Publicado na Revista da CAASP.
Em dezembro de 2014, na entrevista que concedeu à Revista da CAASP, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello repetiu o que alguém já dissera: “Somos 11 ilhas no STF”. Em princípio, nada de condenável no fato de os juízes da mais alta corte do Brasil preferirem o confinamento produtivo em seus gabinetes ao convívio forçado com quem não simpatizem. Porém, os números sugerem que, mais do que magistrados que não conversam, os ministros comportam-se cada um deles como um verdadeiro tribunal monocrático.
Em agosto de 2016, foi o ministro Luís Roberto Barroso quem afirmou, numa palestra para estudantes em Brasília: “O Supremo está virando um tribunal de cada um por si. Criamos um tribunal de decisões monocráticas”.
É fácil provar a asserção de Barroso. Uma pesquisa no site do próprio STF mostrará os seguintes números referentes ao ano de 2016: houve 14.529 decisões colegiadas (3.375 pelo Tribunal Pleno, 6.313 pela Primeira Turma, 4.787 pela Segunda Turma e 55 pelo Plenário Virtual); as decisões monocráticas, excluídas às do presidente da corte, totalizaram 70.091 (64.977 decisões finais, 1.748 decisões interlocutórias, 2.266 decisões liminares, 938 decisões em recurso interno e 262 sobrestamentos). Já o presidente do STF decidiu monocraticamente 32.475 vezes no ano passado. A mesma disparidade é verificada nos anos anteriores.
Por que tantas decisões individuais no mais elevado colegiado da Justiça brasileira? “Foi o método que o STF encontrou para lidar com a avalanche de casos que recebe por múltiplas portas de entrada. O poder cautelar dos relatores é hoje ilimitado. Onze tribunais individuais têm maior capacidade de resposta quantitativa do que um único tribunal com 11 ministros”, ironiza Conrado Hubner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP. “É conveniente para o Supremo dizer que, diante da imensidão de casos, não há outra maneira de decidir. Contudo, o tribunal não faz nada para minimizar as portas de entrada, e assim cria uma blindagem para a fragmentação decisória”, acrescenta.
A busca da celeridade, contudo, não parece ser a única resposta para a questão. É indisfarçável o uso do poder monocrático estrategicamente. “Decisões monocráticas são úteis para os ministros, são oportunidades para cada um avançar com sua visão individual de como deve ser o direito brasileiro, em detrimento da decisão coletiva do plenário ou das turmas, inclusive quando essa visão individual vai contra a visão da maioria do tribunal”, analisa Diego Werneck Arguelhes, professor da Faculdade de Direito da FGV do Rio de Janeiro.
A posição individual de um ministro do STF sobrepõe-se ao colegiado de diversas formas, seja por meio de liminares monocráticas nunca liberadas para inclusão na pauta do plenário ou da turma, seja mediante liminares que, por si só, alteram profundamente o cenário político e cuja reversão seria dolorosa. “Em tais casos, é um custo muito alto para o colegiado reverter a situação e retornar ao status quo anterior. A isso chamamos ‘emparedar’ o plenário”, aponta Arguelhes.
Um ministro pode também decidir liminarmente de modo contrário a uma orientação majoritária. “Como há dezenas de milhares de decisões monocráticas por ano no Supremo, é muito difícil para a sociedade e para o próprio colegiado monitorar quando os ministros estão evitando, emparedando ou ignorando a manifestação da maioria no tribunal. Alguns casos mais salientes, sobretudo se estiveram sendo acompanhados pela imprensa, ficam visíveis, mas é uma luta inglória. O uso estratégico de poderes individuais é facilitado pelo grande volume de processos, que funciona quase como uma coloração protetiva – aparentemente neutra e burocrática – para as ações individuais dos ministros”, explica o professor da FGV.
Segundo Hubner Mendes, comportamentos estratégicos estão presentes em quaisquer órgãos colegiados, sobretudo em tribunais constitucionais, “mas há tribunais com desenhos procedimentais melhores que outros, que constrangem a margem de comportamento estratégico de juízes isolados”. Para o constitucionalista, “um tribunal quebrado em 11 partes, cada qual com absoluta liberdade para obstruir, favorece um tipo de comportamento estratégico bastante perverso”.
Algumas decisões monocráticas recentes ilustram o poder de influenciar o cenário político nacional e a sociedade conferido individualmente aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não se trata, ao menos aqui, de lhes avaliar o mérito, mas a forma como foram tomadas.
Em 2016, o ministro Gilmar Mendes, por liminar, impediu o ex-presidente Lula de assumir um cargo como ministro. A presidente Dilma Rousseff nomeara Lula ministro-chefe da Casa Civil, medida entendida por Mendes como subterfúgio para assegurar ao ex-presidente foro privilegiado. “Qual seria o posicionamento do plenário sobre o tema? Não temos como saber. Quando entrou em pauta, o processo já tinha perdido o objeto”, diz Arguelhes. Registre-se que, em 2017, o ministro Celso de Mello assegurou a posse de Moreira Franco na Secretaria Geral da Presidência da República em caso muito semelhante, se não idêntico.
Conrado Hubner Mendes cita a liminar do ministro Luiz Fux garantindo auxílio-moradia de R$ 4,3 mil aos 16 mil juízes de todo o país. “Não há nada moralmente mais abjeto que essa decisão. Custa cerca de 1 bilhão de reais aos cofres públicos por ano. O ministro Fux não leva a plenário e a presidente do STF faz que não tem nada a ver com isso. Acho curioso que coisas assim não entrem no debate sobre medidas para se enfrentar a crise econômica do Brasil”, critica.
Sozinho, no âmbito das ações decorrentes da Operação Lava Jato, o ministro Teori Zavascki, que morreria em acidente aéreo em Parati (RJ), no último dia 19 de janeiro, afastou do cargo e do mandato de parlamentar o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Detalhe: Zavascki esperou cinco meses após o pedido da Procuradoria Geral da República para manifestar-se a respeito. Não se pode afirmar que esta tenha sido a intenção do ministro ao postergar a decisão por tanto tempo, mas é fato que Cunha teve tempo de conduzir, com toda sua influência, a etapa do processo de impeachment da presidente da República inerente à Câmara.
Grande repercussão também teve a decisão do ministro Antônio Dias Toffoli de revogar prisão preventiva do ex-ministro das Comunicações e do Planejamento Paulo Bernardo, investigado no âmbito da Operação Custo Brasil, desdobramento da Lava Jato. Toffoli negou o pedido da defesa de Bernardo para que as investigações subissem da Justiça Federal para o STF, pois envolviam a senadora Gleisi Hoffman, esposa do ex-ministro. Em seguida, concedeu habeas corpus a Bernardo por considerar que havia “flagrante ilegalidade” em sua prisão.
“A Constituição não dá poder aos ministros individualmente considerados. A unidade relevante é o tribunal, ao qual o texto constitucional atribui competências e poderes”, protesta Diego Werneck Arguelhes. E explica: “Como outros poderes individuais, decisões monocráticas se originam de dispositivos da legislação infraconstitucional e do regimento interno do Supremo. Por exemplo, a lei permite que o relator em mandados de segurança aprecie as liminares, e a lei 9.882/99 (ADPF), que prevê em caráter excepcional a possibilidade de o relator conceder liminar”. Entenda-se por “caráter excepcional” casos de extrema urgência, como em situação de perigo de lesão grave, ou durante recesso da corte. “Aceitamos que um ministro conceda uma liminar em casos urgentes porque imaginamos que estes serão imediatamente levados a plenário. Na prática, porém, a distância entre uma decisão individual e sua apreciação pelo colegiado pode ser enorme. E mais: quem determina essa distância temporal é o próprio ministro relator”, ressalva.
A Revista da CAASP procurou a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmem Lúcia, por intermédio de sua assessoria, para abordar a questão, mas não obteve retorno até o fechamento da edição.
Perdidos de vista
Nada mais natural – e regimental – que um ministro peça vista de um processo em votação. Aprofundar-se, buscar conceitos jurídicos aplicáveis para melhor formular o voto é conduta até recomendável. Mas, e quando as vistas duram mais de um ano, mesmo tendo determinada posição já obtido maioria em plenário?
“Um pedido de vista é, em tese, limitado a algumas semanas pelo regimento do STF. Contudo, o 3º Relatório ‘Supremo em Números’, da Fundação Getúlio Vargas, mostrou que a duração média dos pedidos de vista devolvidos até 2013 tinha sido de 349 dias, e que apenas 20% dessas vistas ficaram dentro dos prazos regimentais”, relata Diego Werneck Arguelhes. “Dentre os pedidos de vista não devolvidos até 2013, a duração média já atingia 1.095 dias, com apenas 5,3% dentro dos prazos. Ou seja, na prática, um pedido de vista que se limite ao prazo é um evento raro”, adverte.
“Pede-se vista, com a duração que o ministro quiser, e impede-se que o julgamento prossiga. Uma não-decisão pode afetar de forma permanente o mundo fora do tribunal, em especial quando se trata do tempo da política, em que algumas semanas ou meses podem ser suficientes para gerar fatos consumados”, pondera o jurista. Ao término de 2016, havia 225 pedidos de vista travando o andamento de ações no STF.
O constitucionalista da USP Conrado Hubner Mendes diz que os pedidos de vista funcionam como poder de veto auferido aos ministros individualmente. “Um ministro, sozinho, pode definir a agenda do tribunal. Eles decidem o que querem, quando querem. Não respeitam nem a lei, nem o regimento da corte. O regimento do STF é um documento de fachada, para consumo externo”, avalia, e prossegue: “O presidente do Supremo, em tese, teria o poder de calibrar melhor a prática do pedido de vista exclusivamente obstrucionista. Mas, apensar de ter esse poder no papel, tem poucas condições práticas de exercê-lo, afinal, o presidente é mais um deles, que adotou as mesmas práticas enquanto ministro antes de virar presidente”.
Ato emblemático citado por Hubner Mendes é a interrupção do julgamento sobre o financiamento privado de campanhas eleitorais. A maioria dos ministros já se posicionara a respeito, mas Gilmar Mendes julgou que a decisão, pelo fim do financiamento empresarial, não seria conveniente nas eleições de 2014. E pediu vistas. “Não importa se seu juízo de conveniência era correto ou não, e sim que ele tenha o poder de obstruir sozinho, sem prestar contas a ninguém. Ele sentou em cima do processo por um ano e devolveu quando achou que era tempo. Foi derrotado no caso, mas vencedor naquilo que pretendia”, acusa o professor.
Os dois juristas ouvidos pela Revista da CAASP igualmente questionam as manifestações na mídia de ministros do Supremo Tribunal Federal, não raro sobre decisões dos próprios colegas. “Se um juiz de primeira instância fizer isso, corre o sério risco de ser disciplinado pelo Conselho Nacional de Justiça por violar a Loman (Lei Orgânica da Magistratura)”, indigna-se Arguelhes. “Falar na imprensa é mais um poder individual muito útil, pois permite ao ministro sinalizar sua posição futura sobre um conflito, encorajando atores fora do tribunal a agirem de determinada forma – ou ameaçando-os com uma decisão futura desfavorável para que mudem de comportamento”, aponta.
Retaliações via mídia são condenadas por Conrado Hubner Mendes. “Um membro de órgão colegiado deve buscar contribuir para a melhor decisão possível com argumentos e análises sofisticadas. Quando é vencido, deve um mínimo grau de deferência à decisão do colegiado, pois ele não é um ser isolado competindo pela vitória”, argumenta, para completar: “Se um ministro, quando perde num caso isolado, sai gritando para fora, agredindo verbalmente a reputação de seus colegas, quebra-se qualquer possibilidade de ‘colegiabilidade’ e respeito mútuo, condições institucionais e morais para o diálogo”.
Pluralismo e eficiência
“A ministra Carmem Lúcia está tentando tornar pelo menos a pauta previsível, anunciando-a com antecedência de um mês. Qual o advogado que ainda não experimentou o dissabor de ir defender seu cliente em Brasília e encontrar a pauta mudada?”. A indagação é do diretor da Faculdade de Direito da FGV do Rio de Janeiro, Joaquim Falcão, um dos coordenadores do Relatório “Supremo em Números”. “Trata-se de um esforço imenso, e que tem de ser contínuo. Na gestão de Carmem Lúcia, dos 205 processos pautados até o final de 2016, apenas 59 receberam uma solução definitiva do plenário”, descreve Falcão.
O professor propõe que o Supremo “construa uma maioria interna que trate de agilizar os andamentos dos processos e de reformar os seus procedimentos, inclusive gerenciais”. Para Falcão, contudo, o fato de um novo presidente assumir a corte a cada dois anos “provoca uma descontinuidade administrativa e política muito grande”.
“Não se faz uma modernização do setor de Tecnologia da Informação, por exemplo, em um ou dois anos. É um projeto de médio prazo, que necessita, inclusive, de uma política de recursos humanos muito intensa”, acredita o jurista.
Joaquim Falcão é também um crítico do excesso de decisões individuais no STF. Ressalvando que “a diversidade, o pluralismo e as visões distintas de Brasil e de justiça são essenciais, indispensáveis a um colegiado na democracia”, ele destaca que “a monocratização – tendência preocupante no Supremo – diz respeito, primeiro, à ausência do plenário, ao fato de mais de 84% das decisões serem tomadas por um só ministro”.
Conforme a edição de 2016 do relatório “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça, um juiz de primeira instância recebeu, em média, 1.500 novos casos no ano. Em contrapartida, cada ministro do STF recebeu 5.700 novos casos. “Trata-se de um Supremo recursal. Agravo em recurso extraordinário, recurso extraordinário e agravo de instrumento representam 86,5% do acesso, segundo o estudo ‘Supremo em Números”, da FGV Direito / Rio”, informa Joaquim Falcão.
“Em 2016, o Supremo deu baixa em 85 mil processos. Pode-se dizer que, em média, cada ministro decidiu cerca de 8 mil processos, sem contarmos o presidente. Vamos fazer uma conta que, se não muito precisa, ao menos serve de argumento. Se consideramos que cada processo, hipoteticamente, tem 100 páginas, é humanamente impossível que os ministros tenham lido, cada um, cerca de 800 mil páginas em um ano. As pessoas começam a perguntar: quem está decidindo pelo ministro?”, raciocina o professor.
“Precisamos de um Supremo Tribunal Federal unido na conquista de maior eficiência, convergente no entendimento de como o ministro deve se comportar, e plural no debate sobre a aplicação da Constituição”, finaliza Joaquim Falcão.