O mistério da queima de “arte degenerada” na Alemanha nazista, 75 anos atrás

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 14:31
"Purim", de Chagall: sobrevivente
“Purim”, de Chagall: o quadro sobreviveu

 

Publicado originalmente na DW.

 

“Nenhum quadro será poupado”, anotava em 13 de janeiro de 1938, em seu diário, o ministro de Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels. Uma frase terminal, com consequências avassaladoras: pouco mais de um ano mais tarde, em 20 de março de 1939, mais de 5 mil obras de “arte degenerada” (Entartete Kunst) seriam queimadas na Alte Feuerwache – então sede do Corpo de Bombeiros em Berlim.

Até hoje não está inteiramente comprovado se a operação de fato ocorreu. Não existem fotos oficiais da incineração, a qual – ao contrário da grande queima de livros de 1933 – se realizou sem presença de público. No diário de Goebbels tampouco há qualquer menção a esse dia.

Ainda assim, Meike Hoffmann e seus colegas do centro de pesquisa Entartete Kunst, da Universidade Livre de Berlim, partem do princípio que a queima realmente aconteceu. “Os nacional-socialistas eram grandes burocratas, mas não seriam capazes de encobrir a destruição decretada de mais de 5 mil obras”, avalia a historiadora de arte.

Além disso, não há o menor vestígio do acervo supostamente liberado para incineração. Ao todo, o regime nazista confiscou quase 20 mil obras de arte moderna.

Dois milhões vão ver ‘Arte degenerada’

Em junho de 1937, Goebbels encarregou o presidente da Câmara do Reich de Artes Plásticas, Adolf Ziegler, de vasculhar todos os museus do país à busca de “arte decadente alemã”. “Estavam incluídas as obras de artistas alemães criadas depois de 1910”, explica Hoffmann. “Tudo o que, na época, era classificado como arte moderna, podia ser confiscado.”

Atendendo à ordem, Ziegler constituiu uma comissão que, numa ação-relâmpago, apreendeu várias centenas de peças, reunindo-as na mostra Entartete Kunst.

“Os senhores veem à nossa volta essas abominações da loucura, da insolência, da inépcia e da degeneração. O que os olhos percebem, nos causa, a nós todos, choque e repulsa.” Com essas palavras, Ziegler abriu a exposição na galeria do parque Hofgarten, em Munique. E Entartete Kunst se revelou um enorme sucesso de público, reunindo mais de 2 milhões de visitantes.

Apreensões sem resistência

Com o termo “arte degenerada”, a propaganda do regime de Adolf Hitler atacava toda expressão artística considerada incompatível com o ideal de beleza nacional-socialista. Seu alvo principal eram obras modernistas alemãs, sobretudo dos expressionistas, quadros de Emil Nolde, desenhos de Käthe Kollwitz, esculturas de Ernst Barlach. Porém também artistas internacionais, como Vassily Kandinsky, Marc Chagall e Pablo Picasso, foram atingidos pela campanha de difamação.

A inesperada receptividade da mostra desencadeou uma segunda onda de confiscações. O ministro Adolf Ziegler recebeu a incumbência de “confiscar os produtos ainda existentes do período da decadência”, e cerca de 19.500 peças foram retiradas dos museus.

“Praticamente não houve resistência”, registra a perita em história da arte Anja Tiedemann, da Universidade de Hamburgo, autora de uma pesquisa sobre o comerciante nazista de arte Karl Buchholz. “O medo da repressão era grande demais.”

Uma grande parte dos quadros ficou no Armazém Viktoria, no porto de Berlim, e num celeiro da rua Köpenicker Strasse. “As obras consideradas comercializáveis em nível internacional foram levadas para o Palácio Niederschönhausen, a fim de serem mostradas aos eventuais compradores”, diz a pesquisadora Meike Hoffmann.

Ironia da história: sucesso na América

Quatro marchands – Bernhard Böhmer, Karl Buchholz, Ferdinand Möller e Hildebrand Gurlitt (pai do atualmente famoso colecionador Cornelius Gurlitt) – foram designados pelo Ministério da Propaganda para vender as peças embargadas, com o fim de angariar dinheiro para o regime.

Somente uma parte relativamente pequena dessas divisas, contudo, chegou aos cofres militares, constata Hoffmann. Estima-se que o lucro não tenha dado para comprar muito mais do que um único tanque de combate.

Porém a venda das obras no exterior teve outro efeito colateral: Karl Buchholz, um dos quatro comerciantes nazistas, conseguiu vender quase 650 peças a seu sócio judeu, Curt Valentin, que emigrara para Nova York.

“Desse modo, os emigrantes judeus puderam estabelecer o modernismo alemão na América do Norte”, afirma Anja Tiedemann. Uma virada irônica da história: entre as intenções Hitler seguramente não estava que essa arte fosse conquistar o outro lado do Oceano Atlântico.

 

hitler

 

“Lista Harry Fischer”: tesouro para pesquisadores

Em 1939, reunidas em bem organizadas listas, Goebbels liberou para serem destruídas as obras que não puderam ser comercialmente exploradas dessa forma. O encarregado do Departamento de Artes Plásticas, Rolf Hetsch, documentou com exatidão burocrática todos os objetos de “arte degenerada”. “No entanto, a lista só foi preservada fragmentariamente e, em parte, traz erros”, ressalva Meike Hoffmann.

O que restou foi uma cópia, a “lista Harry Fischer” – nome do marchand em cujo espólio foi encontrada. Em 1997, ela caiu por acaso nas mãos do historiógrafo Andreas Hüneke, então em Londres. Disponibilizada ao público no início de 2014, trata-se de um verdadeiro tesouro para pesquisadores de proveniência de todo o mundo.

“Essa lista é incomparável para a investigação da ‘arte degenerada'”, diz Tiedemann com satisfação. Além de ser a única lista de inventário preservada na íntegra, afirma a historiadora, ela revela a dimensão dos confiscos nos museus alemães.

Comerciantes nazistas como “salvadores”

“Neste meio tempo, conseguimos reconstituir relativamente bem o arrestamento das obras”, confirma Hoffmann. Juntamente com sua equipe da Universidade Livre de Berlim, ela organizou o mais completo banco de dados existente sobre a “arte degenerada”, totalizando 21 mil registros.

Isso não impede que continuem ocorrendo surpresas. “No inventário nazista, todas as obras que foram destruídas estão marcadas com um ‘X’. Mesmo assim, conseguimos localizar algumas delas.”

Ou seja: comerciantes como Hildebrand Gurlitt “salvaram” essas peças da aniquilação pelo fogo, comprando-as ou escondendo-as em seus depósitos. Em 2012, fiscais do imposto de renda apreenderam quase 1.300 obras de arte no apartamento em Munique de Cornelius Gurlitt, filho do marchand Hildebrand.

Entre elas, cerca de 380 foram identificadas como parte da lista negra dos nazistas, como o guache Paisagem com cavalos, do expressionista Franz Marc.

“Não espero que jamais encontremos uma coleção dessa ordem de grandeza, pelo menos no que concerne à ‘arte degenerada'”, comenta Meike Hoffmann. “Mas não perdemos a esperança de encontrar outras obras marcadas com um ‘X’.”