O mistério da escritora italiana que ninguém sabe se existe mesmo. Por Luísa Gadelha

O autor da arte da capa da edição brasileira também é desconhecido

 

Lila e Elena são amigas de infância. Um dia, Elena recebe um telefonema do filho já adulto de Lila, informando que a mãe sumiu. Desapareceu. Levou todas as roupas, pertences, fotos, objetos e até mesmo os documentos pessoais, como a certidão de nascimento. É como se ela nunca tivesse existido. Como se quisesse apagar qualquer rastro de que tivesse vivido nesse planeta. “Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. (…) Seu objetivo sempre foi outro: volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu”, diz Elena, a narradora.

Para que o sumiço de Lila não seja definitivo, Elena decide desafiá-la e escrever a história das duas, arrancando da memória todas as aventuras, peripécias e incidentes pelas quais as duas amigas passaram, da infância à velhice.

Assim começa o primeiro romance da série napolitana, A amiga genial, da escritora italiana Elena Ferrante. O quarto e último livro da série, Storia della bambina perduta (ainda sem tradução em português), figura entre os 10 melhores livros de 2015 segundo o New York Times.

Em 2015, foi publicado no Brasil o primeiro volume, abarcando a infância e a adolescência da saga das duas amigas. Ambientado no subúrbio de Nápoles, a partir da década de 1950, as referências dos personagens são sempre pelas profissões: Elena, filha do contínuo da prefeitura; Lila, filha do sapateiro; os amigos e colegas filhos da família de verdureiros, do proprietário da confeitaria, do farmacêutico, do marceneiro.

Apesar de extremamente diferentes, tanto no físico quanto nas personalidades, Elena, a narradora, se sente extremamente atraída pela ousadia de Lila quando meninas. Lila, magricela e de língua afiada, não hesita em contestar tudo e todos, enquanto que Elena, roliça e bem comportada, sente ao mesmo tempo um orgulho íntimo da amiga e uma rivalidade crescente.

Quando Elena consegue ingressar no ensino médio e Lila deixa de estudar, por falta de dinheiro, Elena sente uma alegria secreta por estar ao menos uma vez em posição de superioridade em relação à amiga. Ambas alternam períodos de extrema cumplicidade e proximidade com distância e estranhamento, numa relação marcada por familiaridade, gostos compartilhados, mas também inveja e competição.

Crescendo em uma vizinhança pobre, as duas parecem alheias à violência e a miséria. Brincam de bonecas, desbravam os limites do bairro, brigam com os garotos da escola e devoram romances. “Pensávamos que estudar muito nos levaria a escrever livros, e que os livros nos tornariam ricas”.

A amiga genial configura-se, assim, um romance de formação, isto é, uma história que foca no caráter do protagonista, na sua mudança moral e psicológica ao longo do tempo, seu destino.

Elena Ferrante é um dos nomes mais importantes da literatura italiana atual. Estreou em 1992 e tem dois romances adaptados para o cinema. Contudo, ninguém sabe quem ela é. Já duvidou-se até de que ela seja mulher. Ou que seja uma pessoa só. Tudo o que se sabe é que a escritora cresceu em Nápoles. Não aparece em público e só dá entrevistas através de seus assessores.

Conspira-se até mesmo que a série napolitana seja autobiográfica, haja vista a coincidência entre o nome da autora – na verdade um pseudônimo – e da narradora, Elena, e que ambas tenham vivido em Nápoles.

Quando questionada sobre o mistério em torno de sua identidade, Elena Ferrante afirmou que “livros, uma vez escritos, não precisam de seus autores”. Como bem disse uma colunista do The Guardian, Elena Ferrante é famosa por duas coisas: seus romances e sua não-existência. Assim como a não-existência da genial amiga Lila, que desapareceu sem deixar rastros, salvo impressões nas memórias alheias.

Luísa Gadelha

Luísa é graduada e mestra em Letras, graduanda em Filosofia, ama literatura desde sempre e quadrinhos há alguns anos, tem preferência por romances (longos), sejam clássicos ou contemporâneos e se esforça - ou nem tanto - para ler mais poesia. Isso quando não está vendo séries.

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