
Por José Dirceu
Há um misto de decepção e perplexidade na atuação continuada do Banco Central (BC) e do Comitê de Política Monetária (Copom) em relação à inflação como se nada tivesse mudado naquela instituição depois da nomeação, pelo governo Lula, do novo presidente Gabriel Galípolo e da maioria dos seus membros.
Nossa crítica e avaliação não é pessoal. Só constata que o problema do BC não é sua diretoria ou presidente ou mesmo sua burocracia, e sim a hegemonia histórica e agora agravada do capital financeiro – ou do mercado ou mesmo da Faria Lima, como se costumou intitular – sobre a nossa política monetária e o Banco Central. Reforçada, é óbvio, pelo poder institucional cada vez maior, via Congresso Nacional e mídia, do agronegócio.
É o agronegócio o principal aliado do monetarismo e da ortodoxia ideológica neoliberal, que continua quase tão somente aqui e na Argentina. No mundo, vemos algo diferente. As economias e os governos dos EUA, Europa e Japão abandonam os dogmas da década de 1980, em cenário totalmente mudado pela crise da globalização e da financeirização do capitalismo vis a vis a ascensão da China e da Índia e do surgimento dos Brics.
A própria União Europeia publicamente coloca em questão a soberania do dólar como moeda reserva. Com o fim dos acordos de Bretton Woods abre-se uma disputa pela hegemonia mundial, com a China a caminho de se tornar uma alternativa real junto com os Brics. Christine Legarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), diz textualmente: “Cada país precisa garantir que suas políticas nacionais apoiem o crescimento”. E, repetindo Mario Draghi (ex-presidente do BCE) e Enrico Letta (ex-primeiro-ministro da Itália), apela para uma política comum industrial de e para toda a União Europeia.
Nem é preciso gastar muita tinta, como se dizia antigamente. Basta mencionar a política tarifária, fiscal, comercial e industrial de Donald Trump, ou mesmo a de Joe Biden, com sua política industrial, de inovação, social e ambiental que permitiu injeção de cinco trilhões de dólares para fortalecer a economia nessas áreas. Na Europa o que vemos são subsídios a alimentação, energia e aluguéis, rearmamento, política de reindustrialização, com injeção de 800 bilhões de euros, e administração da taxa de juros e câmbio – como, aliás, é o que pretende Trump com suas tarifas, da mesma forma que Ronald Reagan, na década de 1980, impôs ao Japão a valorização do yen.
Cada país busca crescimento, inovação e autossuficiência em alimentos, energia, finanças e tecnologia. No caso dos EUA, vale tudo, inclusive ameaça e uso da força militar e das “Bigs Techs”, intervenção em eleições, anexação ou ocupação de países ou regiões, imposição de bases militares.
A pergunta que se faz é: e o Brasil e sua elite, como agiram?
Nosso BC age como se nada disso esteja ocorrendo e nega realidades como a já consolidada, segundo a qual no mundo atual a política monetária, inclusive a do FED norte-americano, não tem o feito contracionista ou anti-inflacionário do passado, e insiste numa meta de inflação de 3%, também comprovadamente irreal e nunca alcançada, como podemos comprovar nas últimas três décadas. Fora o fato de que o FED e os bancos centrais de muitos países excluem os alimentos e a energia do cálculo da inflação, porque esses itens são mais sujeitos a variações voláteis – no caso Europeu, devido à pandemia à guerra da Ucrânia.
A prova mais evidente do erro histórico e estrutural da política monetária do BC está no fato de que nossa economia, apesar da Selic de 15%, continua crescendo e resiste ao negacionismo do BC. Em reação às duras críticas feitas ao novo aumento da Selic, o presidente do BC, Gabriel Galípolo, anunciou que a taxa permanecerá alta e por longo tempo. Foi um comportamento inadequado à presidência do BC, como algo pessoal, uma “birra”.
No caso norte-americano, o mandato do FED é triplo: desemprego baixo, estabilidade de preços e taxas de juros de longo prazo moderadas. Enquanto isso, aqui no Brasil ainda vivemos na pré-história, daí o negacionismo. O objetivo declarado é reduzir o crescimento econômico, ou seja, o BC faz não apenas política monetária, mas fiscal, como acabamos de ver no caso do IOF, onde de novo os de baixo pagarão a conta, com custo político para o governo. E o mais grave: faz política econômica ao declaradamente ter como objetivo travar o crescimento da economia.

As evidências históricas comprovam que só o crescimento econômico sustentável reduz o déficit público e administra a dívida pública. Não há saída no mundo de hoje para um país como o Brasil, uma das maiores economias do mundo, fora da rota de crescimento econômico. O único objetivo estratégico do governo deve ser o crescimento e o desenvolvimento nacional, como foi historicamente, nos legando o país que temos hoje.
É como se não existisse no mundo uma guerra comercial, o risco de inflação e recessão nos Estados Unidos. É como se o Brasil fosse um país periférico e sem condições de crescer e não a potência que somos, apesar do nosso subdesenvolvimento, inclusive nas doutrinas econômicas.
O círculo vicioso está consolidado, com juros acima da inflação, do risco Brasil e dos juros internacionais, o que alimenta a dívida pública e seu serviço, tornando qualquer política monetária ineficaz, obrigando o governo à busca de um déficit zero primário. Enquanto isso, temos um déficit nominal de 7,9%, sendo o de 2024 8,45%, e um serviço da dívida pública que paga em média 16,4% de juros, representando 7,8% do PIB.
O país está viciado no rentismo e na ortodoxia monetária e, em vez de detectar uma crise de oferta e criar as condições para sua superação, insiste nas soluções anti-inflacionárias monetárias e não na busca de aumentar a produção interna e superar os gargalhos de inovação ou produção. Sem falar na inexistente inflação de demanda, que geralmente é ausência de política pública, como no caso dos alimentos, onde toda política de estocagem e incentivo e aumento da produção dos gêneros de primeira necessidade foi abandonada nos anos Temer-Bolsonaro, com o agravante de desmonte dos órgãos públicos responsáveis.
As políticas públicas como a Nova Indústria Brasil, o PAC e a transição energética carecem de investimentos e créditos, estranguladas pela dupla escassez de recursos públicos, de crédito e de investimentos privados, na ausência de uma reforma tributária e de acesso a um sistema bancário que de fato cumpra seu papel de financiar o desenvolvimento nacional.
Os bancos públicos, essenciais e decisivos em toda a história da nossa industrialização e desenvolvimento ao lado de estatais como a Petrobras, são descapitalizados e alvo de promessas de privatização – como, aliás, a própria Petrobras.
A concentração de renda só aumenta com esses juros que favorecem o setor financeiro a apropriar-se da renda nacional via juros reais e spread bancários escandalosos, e ainda abocanhando a maior parte dos juros pagos pela dívida pública. Enquanto isso, parte expressiva da renda nacional, principalmente do trabalho, dos micros e pequenos empresários e das classes médias é expropriada pelos juros e pela estrutura tributária apoiada nos impostos regressivos e indiretos, e não na renda, riqueza e propriedade, como na maioria dos países.
Sem recursos para investimentos, o poder público vive cercado pelo BC e pela maioria liberal e de direita do Congresso Nacional, obrigando o presidente da República à única saída de lutar para manter o mínimo dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988, sem capacidade de investimento público e com o investimento privado tolhido pelas altas taxas de juros.
É como se não existisse a janela de oportunidade histórica que se abre ao Brasil no novo mundo que surge, não só pela revolução tecnológica mas pelas mudanças geopolíticas, colocado em posição privilegiada pela sua riqueza natural e clima, território, população e PIB. O Brasil é um dos cinco países do mundo que reúne três condições: mais de 2 milhões quilômetros quadrados de território, mais de 200 milhões de habitantes e mais de 2 trilhões de dólares de PIB, incluindo soberania alimentar, matriz energética limpa, mercado interno amplo, base industrial e tecnológica e infraestrutura mínima para um salto em 10 anos, capaz de dobrar nossa renda média e reduzir nossa desigualdade social histórica, eliminando a pobreza e a miséria que envergonha um país rico como o Brasil.
Salta à vista a gravidade da política econômica que nossas elites nos impõem frente às possibilidades e oportunidades que o Brasil tem no mundo de hoje, onde não há tantos países e mercados para investir como o nosso. E, mesmo se analisarmos nosso potencial interno, veremos que podemos crescer 10 ou 20 anos apenas para atender nossas demandas internas, sejam sociais ou econômicas. Só a concentração de renda e a estrutura tributária e bancária financeira são de fato os fatores impeditivos para o nosso desenvolvimento nacional.
Nosso desafio é mais político do que econômico, daí a necessidade urgente de uma reforma política institucional que recupere o papel do Estado, a exemplo da UE e, no passado recente, da Coreia e do Japão, e mesmo os EUA nas crises de 2008/2009 e agora sob Trump, quando até o poder militar é acionado em busca de objetivos nacionais. Mais do que nunca precisamos recuperar o papel do Estado como planejador, indutor e incentivador e colocar o setor financeiro a serviço do desenvolvimento nacional.