O neofascismo chega à Espanha com o Vox. Por Willy Delvalle

Atualizado em 10 de dezembro de 2018 às 6:46
Comício do Vox, partido de ultradireita espanhol que conquistou 12 assentos na Andaluzia Foto: Reprodução do Twitter

Eles dizem que a quantidade de homens mortos por mulheres é igual à de mulheres mortas por homens; são contrários aos imigrantes “clandestinos”, dizem não defender a ditadura de Franco, mas demonstram hostilidade aos marxistas que o combatiam. 

O partido de extrema direita Vox conquistou um feito inédito para as últimas décadas nas recentes eleições regionais da Andaluzia, na Espanha; 12 lugares no parlamento. E espalhou um temor: o fascismo está de volta? 

A Espanha parecia até o último dia 2 de dezembro um dos raros países na Europa a estar imune ao avanço das extremas direitas. Os socialistas, que dominaram a política andaluza ao longo das últimas décadas, sofreram um primeiro baque. O PSOE ainda é a primeira força do parlamento, com 33 parlamentares e 1 milhão de votos. 

A conquista do Vox na Andaluzia foi menos efetiva do que da AfD (ultradireita) na Alemanha, onde é a terceira força parlamentar. O Vox obteve mais de 395 mil votos, tornando-se o quinto no parlamento, atrás de PSOE, PP (direita; 749 mil votos), Ciudadanos (direita; 659 mil) e Adelante Andalucia (esquerda; 584 mil). O partido já anunciou que vai disputar todas as futuras eleições, nas outras regiões espanholas, e mesmo ao parlamento europeu. 

Marine Le Pen, líder da direita radical francesa, foi a primeira a parabenizar o grupo. Alguns podem achar que o quinto lugar nas eleições andaluzas não pode ser chamado de vitória. Mas o que significa o surgimento da extrema direita num lugar conhecido por ser o bastião da esquerda? 

Origem 

O Vox (do latim, voz) nasceu em 2014, num hotel quatro estrelas de Sevilha, a capital da Andaluzia. Seu atual líder, Santiago Abascal, num look descrito pelo jornal ABC como “desordenado” e bem diferente da aparência de agora no estilo espartanos do filme 300, apresentava o projeto: mudar a Constituição para reunificar a Espanha, hoje dividida em regiões autônomas; dar menos espaço aos partidos, que ocupavam, na sua concepção, mais do que deviam. “Não há uma lei que os vigie para que não se corrompam”, argumentava. Partia para a vertente social. “Perdeu-se o respeito à família, o culto à vida, à democracia verdadeira”. 

Fazia um mês que o Podemos havia sido formalmente institucionalizado. Abascal também queria sua vez, agregando, como ele, ex-partidários do direitista PP, assim como liberais, esquerdistas que queriam se unir pela “pátria” e pessoas que queriam embarcar no mundo político pela primeira vez. 

“Nada de estruturas regionais, nem juventudes, é ali que começam as más artes de garotos querendo viver só de política. Profissionais e províncias, todo o poder do partido que se sustentar numa base local, municipal”, dizia, num discurso recuperado peloABC . 

Lembra o jornal que, no ano seguinte, o Vox já disputava as eleições, apresentando como candidato um juiz polêmico por ter concedido a guarda de uma criança por um dia da mãe ao pai sob o argumento de que o garoto queria vestir-se de nazareno numa confraria. A campanha foi um desastre. Seus candidatos obtiveram 18 mil votos, 0,45%. 

Escravidão 

A crise de refugiados é um dos fatores apontados como fundamental para explicar a mudança do voto ao Vox. A Andaluzia, localizada no sul espanhol, é a porta de entrada de quem chega do Mar Mediterrâneo.

A maioria dos migrantes vem da África, e um terço do Magreb (a África branca e árabe). Foi o suficiente para despertar o ódio numa parte do eleitorado. O cenário permitiu a primeira mentira na qual surfaria o Vox, de que os migrantes “competem” pelos serviços sociais do país. 

“Trata-se de uma população jovem, em plena idade laboral, que não utiliza precisamente nenhum tipo de serviço. Pelo contrário, estão demonstrando que em períodos de crise suportam mais do que a população nacional”, esclarece Juan Antonio Miralles, diretor da ONG Almeria Acoge, ao El País. 

A Andaluzia é a região que concentra as cidades mais pobres do país, o que gera ressentimento na separatista e cosmopolita Catalunha, que concentra alguns dos municípios mais ricos do país. Certa vez, ouvi de um taxista em Barcelona: “Madri rouba nosso dinheiro para dar à Andaluzia”. O Vox é contrário ao separatismo catalão, o qual chama de “golpista”. 

A extrema direita quer uma Espanha Grande de Novo, num discurso à la Trump. Por isso, quer reformar a Constituição para acabar com a autonomia das regiões espanholas, que ao total têm 17 parlamentos. Dissolvê-los para formar apenas um parlamento é um projeto contraditório para os interesses andaluzes, pois é justamente o serviço público que permitiu o crescimento econômico de 3% do ano passado para cá em Almeria, a única região onde o Vox saiu vencedor. 

No geral, a Andaluzia vem observando uma queda no seu crescimento econômico desde 2015, quando havia crescido 3,5%. A previsão para 2018 é crescer 2,7%. O desemprego é maior na Andaluzia do que na Espanha, 22,9% segundo dados de setembro, contra 15,9% na média nacional. 

Os imigrantes surgem numa parte do imaginário social como aqueles que roubarão empregos. Fato é que eles vão para a Espanha para trabalhar, mas em condições que não despertam o interesse de nenhum espanhol; a escravidão.

Reportagem do canal France24 revelou as condições em que são “empregados”, em estufas de tomates, para viver longe de tudo, em verdadeiras favelas, abandonadas, mas perto do “trabalho”. Se adoecem, como recorrer aos serviços públicos sendo ilegais? Nas plantações, regadas a pesticidas, se adoecerem ou até morrerem, ninguém saberá de suas mortes. 

Os aliciadores ou patrões que vão angariar a mão de obra barata em praças públicas não comunicarão o desaparecimento de ninguém, pois sequer existem legalmente no território espanhol. A reportagem francesa mostra uma operação estatal contra os escravagistas, que orientam seus “empregados” a se esconder mediante a chegada de funcionários públicos nas propriedades. Afinal, os tomates baratos que vão parar nos mercados de toda a Europa precisam ter seu preço garantido. 

O grande paradoxo é que são esses patrões que votaram no Vox, o partido anti-imigrante, o partido é que contra a mão de obra de seus eleitores. Segundo pesquisa encomendada pelo jornal El Mundo , o voto na extrema direita vem de quem era eleitor dos conservadores PP e Ciudadanos: 178 mil votavam no primeiro, 58 mil no segundo. 26 mil votavam no esquerdista PSOE. 

Francisco Camas, analista do instituto Metroscopia, traça ao El País o perfil do eleitorado Vox: sobretudo de direita, homens de classe média alta, “descomplexado”. Juan Arias, diretor da organização Almeria Agrícola, complementa na mesma reportagem: “os agricultores aqui não são agricultores que conhecemos como a definição de agricultores; são sobretudo empresários. 

Os municípios que são mais turísticos e menos dominados pela agricultura são socialistas”. A região onde venceu o Vox é dominada pela agricultura intensiva. Quanto ao PSOE, não se pode esquecer que o atual primeiro-ministro espanhol, o socialista Pedro Sánchez, foi quem aceitou acolher o navio de migrantes Aquarius, após as recusas de Itália e França, abrindo o território espanhol a centenas de africanos. Foi o fim para os xenófobos. 

No final de julho deste ano, mais de 100 migrantes pularam o muro que já existe na fronteira entre Espanha (Ceuta) e Marrocos e lançaram ácido, cal e fezes contra os policiais que tentaram impedi-los.

Javier Ortega, um dos líderes do Vox, foi até a região dizer que a migração no local “não é imigração, é uma verdadeira invasão da fronteira da Espanha. Basta de concepções humanitárias. Os policiais precisam de mais recursos”. No video de 59 segundos postado no YouTube ( https://www.youtube.com/watch?v=GFL5xPRweqE ), ele defende a construção de um muro e a necessidade de arame farpado para “proteger” os espanhóis e a Europa, sob a hashtag #FronterasSeguras. A inspiração é assumidamente em Trump, com quem compartilha os conselhos de Steve Bannon. 

Fake news 

O Vox também surfa no combate à teoria do gênero. Em uma entrevista a um programa da rádio SER, Javier Ortega disse que a quantidade de homens mortos por mulheres é a mesma que a de mulheres mortas por homens. “Quais são os dados?”, perguntou a apresentadora. “Agora, de cabeça, eu não os tenho, mas Alicia Rubio (membro do partido) certamente os tem”, respondeu. 

Inconformada, a jornalista insiste que mais de mil mulheres foram mortas nos últimos anos na Espanha. E ele insiste que a violência não é de gênero, é familiar, o que requer uma mudança na lei atual. “As feminazis impuseram um princípio de culpabilidade aos homens”, argumenta na entrevista. “Sou feminista. Sou uma nazista?”, pergunta a jornalista. Segundo a proposta do partido, a lei precisa ser reformada de modo que a mulher prove a acusação de agressão, visto que uma quantidade expressiva das denúncias de agressões feitas contra mulheres é “falsa”. 

A rádio desmentiu posteriormente o partido. “Os dados são públicos e podem ser baixados na página do Conselho Geral do Poder Judiciário. De 2009 a 2016, os dados desmentem a suspeita do partido ultradireita: mais de 550 mulheres assassinadas contra 57 homens assassinados”. Sobre as supostamente falsas: “de 1.200.000 denúncias, 96 mulheres foram condenadas por denúncias falsas”. 

Ortega também disse que a maioria dos agressores são estrangeiros. Outra mentira desvendada pela rádio: “dos 9.000 homens condenados no último trimestre por violência machista, 71% são espanhóis e 28% são estrangeiros”.
As redes sociais, assim como para Trump, Bolsonaro, Salvini e o Brexit
 , são um grande pilar do crescimento do Vox e para suas falsas informações, as infox. O partido afirma que investiu 150 mil euros na campanha via internet. 

Picos de atividade do partido nas redes sociais foram observadas sobretudo no domingo de eleições. O site Diários Siglo XXI contou 485 tweets por minuto; 942 mil tweets ao longo do comício do partido.

“A primeira razão pela qual as forças populistas usam com profusão as redes sociais e os aplicativos de mensagens é que estas acabaram com a ‘intermediação’ dos meios de comunicação tradicionais. Quer dizer, agora as fontes podem chegar diretamente ao público, sem jornalistas, o que permite muito mais margem de manobra para a manipulação de conteúdos para a fabricação de fake news ”, diz o jornal La Vanguardia, da Catalunha. 

Fascismo 

Alguns intelectuais acreditam que o termo fascismo é exagerado e que a extrema direita francesa é muito mais radical que a espanhola, por exemplo. Que o termo fascista se refere a um período muito específico e com características muito próprias – o regime franquista foi de 1938 a 1973, restaurando a monarquia, também defendida pelo Vox. Outros dizem que utilizar o termo fascista ajuda a normalizá-lo e a integrá-lo ao parlamento. 

Talvez uma digressão à filosofia possa ajudar a um esclarecimento. Na obra Mil Planaltos , os filósofos franceses Gilles Deleuze et Félix Guattari não falam em sociedades, mas em bandos. Cada bando é caracterizado por um sujeito anomal, isto é, de “nomos” – regra em grego – o sujeito transgressor. Ele está no limite do bando e é a partir dele que se define o que está dentro e o que está fora. 

Quando o movimento do bando não vai em direção a esse sujeito, mas ao centro, começa o perigo. E quando para esse centro são deslocados o Estado, a família ou a pátria, esse bando vira totalitário, autoritário, fascista, nazista. Quer dizer, quando o bando não será mais qualificado pelo sujeito anomal, o sujeito que os une, mas por algo que não é um sujeito, mas uma ideia, de Estado, de família, de pátria, o totalitarismo se instala. 

As reivindicações do Vox mostram os três. O amor a um Estado espanhol, dilapidando a diversidade parlamentar, logo decisional, do país. Um Estado pela família, para acabar com o direito ao aborto e ao casamento homossexual. Um Estado pela pátria. Mas como Bolsonaro, uma pátria pro-elite, pela redução dos impostos para que os empresários possam supostamente investir mais e empregar mais. Mas o que significa empregar mais para quem escraviza?