O novo surto do Calígula do Norte

Atualizado em 3 de outubro de 2025 às 16:44
O secretário de Defesa, Pete Hegseth, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Foto: Andrew Harnik/Getty Images

Publicado no Cafezinho

O centurião Cássio Queréa, veterano romano condecorado, era sistematicamente humilhado pelo imperador Calígula, nos conta Suetônio. Quando perguntava qual seria a senha do dia, o imperador escolhia palavras embaraçosas como “Vênus”, forçando o velho soldado a repeti-las com sua voz fina. Quando Queréa beijava o anel imperial, Calígula simulava gestos pornográficos, degradando aquele que fora herói de guerra.

Quase dois mil anos depois, em 30 de setembro de 2025, a cúpula militar dos Estados Unidos foi reunida em Quantico para ouvir o Secretário de Guerra Peter Hegseth e o presidente americano Donald Trump despejarem bravatas, negacionismo científico, discursos de boteco, xingamentos, insinuações racistas e extremismo ideológico.

O evento, transmitido ao vivo pelo YouTube da Casa Branca, transformou-se em sessão pública de degradação. Hegseth tratou os oficiais com vulgaridade vergonhosa. Acusou as Forças Armadas de terem se tornado um “departamento woke” infectado por “lixo ideológico”, para então declarar: “acabamos com essa merda”.

Os mais altos comandantes militares do maior exército do mundo vieram dos confins do planeta, gastando milhões de dólares do contribuinte, para ouvir um babaca falar palavrão.

Ao proibir expressamente que as instituições militares discutissem mudança climática, o Secretário demonstrou que uma corporação desse tamanho não olhar para o meio ambiente é apenas estupidez autodestrutiva. Em determinado momento, olhou para a câmera, apontou, e soltou a gíria “FAFO” (Fuck Around and Find Out) como se fosse muito cool proferir obscenidades na frente dos generais e do mundo inteiro.

O ataque mais direto veio quando declarou: “é cansativo olhar para formações de combate e ver tropas gordas. É completamente inaceitável ver generais e almirantes gordos nos corredores do Pentágono”. A humilhação pública de oficiais por seus corpos físicos é tática clássica de degradação autoritária.

Hegseth também fez insinuações preconceituosas ao atacar cotas e diminuir mulheres nas Forças Armadas, diante de um auditório repleto de comandantes negros e mulheres, insinuando que não chegaram ali por mérito — uma mentira, já que todos ascendem na hierarquia militar americana através de trabalho e competência.

O Secretário ameaçou: “se as palavras que estou dizendo hoje fazem seu coração afundar, então você deveria renunciar”. O expurgo já começou. “Demiti vários oficiais superiores”, vangloriou-se, nomeando alvos: “Fora com os Millies”.

O general Mark Milley e Donald Trump. Foto: Jim Young/Reuters

Entre eles está o General Mark Milley, Chairman of the Joint Chiefs of Staff, que em 2023 declarou: “Nós não prestamos juramento a um rei, a um tirano, a um ditador, ou a um aspirante a ditador. Juramos lealdade à Constituição”. Trump pediu sua execução. Hegseth revogou sua segurança pessoal e ordenou investigação contra ele.

Quando Trump subiu ao palco, foi recebido com um silêncio constrangedor que incomodou o próprio presidente, levando-o a comentar sobre nunca ter visto palco tão quieto. Os generais não são proibidos de se manifestar — Trump até disse que podiam bater palma se quisessem — mas ninguém aplaudiu.

Ninguém riu das piadas, ninguém bateu palma, nem no começo, nem no final, nem para Trump, nem para Hegseth. Então veio a ameaça: “se você não gostar do que estou dizendo, pode sair da sala. Claro, lá se vai sua patente. Lá se vai seu futuro“. A mensagem é inequívoca: lealdade pessoal a Trump, não à Constituição, determina carreiras militares.

Trump militarizou a política doméstica: “Em nossas cidades, que vamos discutir porque agora são uma grande parte da guerra”. Descreveu cenários onde “você tem criminosos atirando em bombeiros”. A desumanização de cidadãos e a identificação de um “inimigo interno” são marcadores clássicos do autoritarismo.

Banalizou ameaças nucleares gabando-se de ter enviado submarinos “para a costa da Rússia”. Disse que chama armas nucleares de “N-word” (palavra que começa com N), fazendo uma piadinha ofensiva ao afirmar que “existem duas N-words e você não pode usar nenhuma delas”. A segunda N-word seria nigger, termo de depreciação racial quando usado por brancos.

A omissão de algumas lideranças brasileiras relevantes é simplesmente melancólica. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, que vestiu o boné MAGA, declarou: “Por que não entregar uma vitória para ele?”. Em vez de falar de vitória ao Brasil, fala de vitória a Trump. Outro silêncio estranho é o de Ciro Gomes, candidato presidencial múltiplas vezes, e vice-presidente nacional do PDT.

O que vimos em Quantico foi a encenação pública do autoritarismo em marcha, transmitida ao vivo. Calígula foi assassinado pelo próprio general que o humilhava. Esperemos que, no caso de Trump, o seu fim seja uma derrota política liderada por todos os americanos que ele vem atacando nesse momento.

Tácito escreveu que “os piores crimes foram ousados por poucos, desejados por mais, e tolerados por todos”. Ainda estamos na fase da tolerância. Mas já há muitos sinais de que tanto americanos quanto outros países já estão perdendo a paciência.