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O padrão Globo de cobertura de casos de sonegação fiscal alheios

Um país cujo slogan é “Segredinhos da Natureza”

 

Esta reportagem faz parte da série do DCM sobre o escândalo de sonegação da Globo. Elas foram produzidas com financiamento dos leitores através do Catarse. As demais estão aqui.

 

Quando um hotel em Brasília quis dar emprego a José Dirceu, na época preso pelo caso do mensalão, um repórter da Rede Globo foi enviado ao Panamá com a tarefa de levantar informações sobre a offshore sócia da empresa no Brasil. Em tom de escândalo, a reportagem divulgou entrevistas e mostrou cenas para fazer o público concluir que era tudo fachada.

Se fizesse o mesmo sobre o caso da Empire Investment Group Ltd, nas Ilhas Virgens Britânicas, a TV não teria nem pessoas para mostrar. A empresa que a Globo manteve aberta durante um ano e meio nas Ilhas Virgens Britânicas nunca passou de uma caixa postal. “Fraude”, definiu o auditor fiscal Alberto Zile, ao descrever a engenharia financeira montada pela empresa para sonegar impostos do Estado brasileiro.

Nesse período, abriu e fechou duas empresas, e fez alterações no contrato social em outras quatro, algumas com a assinatura dos três filhos de Roberto Marinho.

Ao ver as provas coletadas pelo auditor fiscal, mostradas por mim, o advogado tributarista Jarbas Marchione, um dos mais respeitados em sua área no Brasil, ficou surpreso: “A semelhança com o esquema do Maluf é impressionante. Eles abrem e fecham empresas para tentar dificultar o rastreamento”, disse. “Mas as autoridades fiscais, não só no Brasil, aperfeiçoaram muito os mecanismos de investigação, e é por isso que descobriram esse caso de sonegação da Globo.”

Segundo Marchione, esse avanço não foi por acaso. Foi uma reação à escalada do terrorismo e do poder do narcotráfico. Os governos dos países desenvolvidos procuraram meios legais para cortar o fonte de financiamento de grupos criminosos nos territórios além de sua fronteiras. Com a crise econômica, o cerco começou a se fechar também para os sonegadores.

Quem não paga imposto acaba tendo uma vantagem desleal sobre seus concorrentes. O mesmo raciocínio se aplica à corrupção. O suborno em países alheios era tolerado em muitas nações europeias, como meio legítimo de obter contratos. Não é por outro motivo que a francesa Alston e a alemã Siemens deitaram e rolaram na compra de autoridades do governo paulista, para ganhar concorrências no Metrô e na CPTM.

Quando a prática deixou de ser não apenas imoral, mas também ilegal, o jogo mudou, e algumas corporações, para não serem condenadas nos países de sua sede, estão fazendo acordo, e reembolsando governos lesados. Por que será que o Deutsch Bank se apresentou espontaneamente para devolver recursos desviados da prefeitura que Paulo Maluf manteve lá durante algum tempo?

Outras empresas se antecipam ao escândalo para preservar a imagem. Não é o que acontece com a Globo. Até porque, detentora dos veículos de maior audiência e sócia de outros empreendimentos de comunicação, a emissora parece acreditar que controla essa variável. “Em nenhum país democrático liberal, uma única rede de televisão detém mais de 40 por cento de audiência”, diz o professor Marcos Dantas, titular da Escola de Comunicação da UFRJ, ex-secretário de planejamento do Ministério das Comunicações.

Para realizar esta série de reportagens, entrevistei Marcos Dantas e outros três pesquisadores da televisão no Brasil, e acabei descobrindo que, do ponto de vista teórico, os estudos sobre a Globo estão bastante avançados, embora praticamente nada se ouça a respeito. As entrevistas desses pesquisadores serão publicadas no decorrer da série.

“A concentração de mercado, num nível tão alto, como o que ocorre no Brasil no campo da comunicação, prejudica o direito à informação dos cidadãos, e cria um poder de lobby nefasto para a democracia”, afirma, por sua vez, o professor César Bolaño, formado em jornalismo pela USP, com doutorado em economia pela Unicamp e professor da Universidade Federal de Sergipe. Bolaño é autor do livro “Globo – 40 anos de poder”, que está esgotado.

No mundo das coisas visíveis, fatos recentes confirmam o que teóricos como Bolaño e Dantas estudam. Fora da internet, que veículo noticiou o desaparecimento na Receita Federal do processo que apurou a sonegação de mais de 180 milhões de reais (valores de 14 anos atrás)? Na véspera de ser enviado para o Ministério Público Federal, ao qual caberia denunciar criminalmente os filhos de Roberto Marinho, uma servidora pública interrompeu suas férias, foi até a Delegacia da Receita e levou os dois volumes mais o apenso do processo.

Em qualquer lugar do planeta, é notícia importante, mas por aqui o fato mereceu o silêncio da mídia. O poder de lobby da Globo foi descrito pelo professor Anderson David Gomes, num estudo sobre sobre o direito de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Em 2001, a CBF cancelou os jogos das 21 horas de sábado, importantes para os negócios em pay per view e havia insinuações entre os clubes de futebol e o SBT — na final do campeonato, o Vasco jogou com o logo da emissora da Sílvio Santos na camisa.

A resposta veio através de um Globo Repórter, apresentado por Alexandre Garcia, com reportagem de Marcelo Resende. A emissora denuncia o enriquecimento de Ricardo Teixeira e diz que o então presidente da CBF tinha empresas em paraísos fiscais, “onde a lei é manter no mais absoluto sigilo o nome dos investidores”. Uma das empresas é a Ameritech Holding, nas Ilhas Virgens, onde, agora se sabe, a mesma Globo tinha uma empresa aberta para sonegar impostos, segundo a Receita Federal.

Para chegar às Ilhas Virgens Britânicas, o jeito mais prático é ir de avião até às vizinhas Ilhas Virgens Americanas, num voo que faz escala em Atlanta, na área dos Estados Unidos que fica no continente. Aproveitei a conexão para conhecer a redação da CNN, o canal de notícias com sede na cidade. A surpresa foi encontrar o prédio cheio de gente, e a maioria não era jornalista. Eram americanos — centenas num fim de tarde, mas soube que passam por lá milhares todos os dias — que fazem do endereço um ponto de encontro. Tem até uma praça de alimentação. Povo e jornalistas dividem o mesmo espaço. Para um brasileiro, impossível não comparar. A última vez que o povo tentou chegar ao saguão da emissora brasileira, em junho de 2013, em algumas capitais, foi para jogar estrume.

 

Joaquim de Carvalho

Jornalista, com passagem pela Veja, Jornal Nacional, entre outros. joaquimgilfilho@gmail.com

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