O país do “Tropa de Elite” não vai destruir o da “Central do Brasil”. Por Fernando Brito

Atualizado em 16 de outubro de 2019 às 10:20
Central do Brasil. Foto: Reprodução/Divulgação

Publicado originalmente no blog Tijolaço

POR FERNANDO BRITO

Fernanda Montenegro, que hoje completa 90 anos, fez o que artistas fabulosos fazem, natural e até involuntariamente: representou e representa seu povo, sua humanidade, suas contradições, sentimentos e desejos.

Pois só assim é possível incorporar à técnica aquilo que diferencia os que são fenômenos daqueles que são apenas – e não é pouco ser – bons.

É que emprestam ao que fazem algo sempre intangível, mas evidente: a alma.

Daí o fato de nos enxergarmos, e ao nosso mundo, em Fernanda Montenegro, viva ela o papel que viver: das aristocratas a Dora, a escritora de cartas do Central do Brasil.

Aliás, ali, Fernanda consegue ser o intérprete de algo que viria a ser o que o Brasil buscava: o reencontro com suas origens, brutas que fossem e mais abrutalhadas pela pobreza, justo quando a cabeça de nossas elites, em plena era FHC, delirava com uma globalização modernizante e com a negação daquelas teias afetivas.

A Dora, fria e impessoal das cartas escritas com chavões, reencontra-se seus laços e sua humanidade com a diáspora da família do menino Josué. O bem não enfrenta o mal: ele brota e prevalece nas relações humanas.

Qualquer semelhança com o que se passaria com o Brasil não é mera coincidência: é arte.

Dez anos depois, o Brasil era outro. Os conflitos e desigualdades, então, passariam a ter como “solução” o confronto, em lugar do encontro. Seria na força bruta que uma “Tropa de Elite” nos daria a paz, embora ela própria fosse marcada pela degradação, a agressão e a morte.

Elio Gaspari, há uma semana, disse na Folha que a reação ao filme era o sinal precoce dos tempos que nos viriam:

As plateias de “Tropa de Elite” haviam mandado um sinal e ele materializou-se na eleição. Tudo começou ali. O cidadão que aplaudiu a cena da tortura acreditava que aquele deveria ser o jogo jogado, reservando-se o direito de achar que só se deve torturar quem se mete com traficante ou que só se deve acertar a cabecinha do sujeito que vai para a rua com um fuzil.

Gaspari erra, porém, ao não acentuar que o filme é só um filme, se não se conecta a realidades da vida social. Falta dizer que estes “instintos mais primitivos” foram, desde aqueles anos, irrigados e cevados por um sistema de mídia que passou a fazer deles mais que palatáveis: os fez modelares.

Não era mais a pobreza a nossa inimiga: eram os pobres.

Não é preciso dizer a que isso nos levou.

A brutalidade perdeu seus pudores, ocupou ruas e palanques e foi procurar nos justiceiros a redenção no inferno.

Naturalizou-se a “estupidocracia” que vivemos, não só pelo estúpido-mor que nos preside, como pela corte de energúmenos que o cerca: Eduardo, Carluxo, Damares, Weintraub, Ernestos…

Não faltou nem um siderado no comando das artes cênicas, decidido a subvencionar a dramaturgia gospel e à vontade até para ofender a grande mulher que hoje aniversaria, chamando-a de “sórdida” e “canalha”, por uma foto em que ela se refere a esta Inquisição e suas fogueiras.

Não o valorizemos demais, porque ele é só uma emanação desta canalha que se apossou deste país, transformando-o num lugar de agressividade, violência, repressão, imbecilidade.

Não é a ela que eles atacam, à atriz.

É ao que ela significa e que lhe deu, ao longo de muitas décadas, reconhecimento maior do que qualquer Oscar poderia significar.

É que, por ofício, técnica e alma, Fernanda Montenegro a nós, brasileiros, representa.