O papa Celestino V, que renunciou ao papado em dezembro de 1294, foi um modelo para Bento XVI.
O texto abaixo pertence ao historiador e escritor Jon Sweeney, autor do livro The Pope Who Quit (O Papa que Renunciou)
Perto do encerramento da Idade Média, em 1285, viviam três homens cujas vidas se cruzariam e mudariam a história para sempre. Todos eram poderosos. Todos eram teimosos. Todos eram hábeis na vida e nos trabalhos para os quais pareciam destinados desde que nasceram.
O mais importante dos três é também a figura central dessa história, Pedro de Morrone. Seu sobrenome vem da montanha que ele considerou seu lar durante a maior parte de sua vida. Pedro era um monge fundador de uma ordem religiosa e, em opiniões diversas, era um reformador, um instigador, um profeta, um covarde, um tolo ou um santo. Ele foi quase que varrido da história, embora, praticamente de dia para noite, tenha se transformado de simples ermitão no Papa Celestino V, o homem mais poderoso na Igreja Católica. Ele também se tornou o único {o livro é anterior à renúncia de Bento XVI} homem na história a renunciar a seu posto, desocupando o trono de São Pedro antes de morrer.
Se Pedro Morrone vivesse hoje nas montanhas perto de Roma, Los Angeles ou Nova Delhi ele poderia ser um guru famoso e consagrado. Se ele vivesse no século XXI, as conversas com seus colegas monges poderiam ser contrabandeadas de seu reduto como arquivos de áudio digitais, que logo seriam empacotados e levados para alguma firma de Nova York. Ele apareceria de vez em quando para falar em particular com os líderes mundiais, que também o procurariam para pedir conselhos pessoais e, talvez, para tirar retratos. Pedro era esse tipo de figura naquele tempo.
Mas a história raramente gira em torno de um único indivíduo, e a história de Pedro Morrone, ou Celestino V, não é uma exceção. Embora vários monges e adeptos tenham passado por sua longa vida, há dois homens em particular cujo poder e ambição afetaram diretamente a vida desse ermitão complexo e, consequentemente, cujas ações influenciaram o mundo.
O primeiro deles era Carlos II de Anjou (1254-1309), o insinuante, corrupto e atraente rei de Nápoles. Tendo herdado sua coroa de seu pai, um rei muito mais poderoso do que ele, em janeiro de 1285, Carlos II aprendeu rápido como usar homens influentes, e também como ser útil para eles. Carlos manteve o papa ermitão na trela curta.
O segundo homem importante para nossa história é Benedito Gaetani, um dos onze cardeais eleitores que escolheram Pedro Morrone como papa. Filho de uma família proeminente, ele era um verdadeiro romano e sobrinho do Papa Alexandre IV (1254-61). Bem educado desde a juventude, formou-se como advogado, dominava o direito canônico e foi feito membro da cúria aos vinte e nove anos.
Pelos próximos trinta anos, Gaetani ganhou reputação como um advogado papal supremamente competente, capaz de representar o papa no confronto contra a heresia e a rebelião espiritual em lugares como Inglaterra e França, afirmando autoridade moral quando movimentos heréticos tinham início. Ele se tornaria conselheiro de Celestino V, que confiava nele com todo o coração, e ajudaria o papa ermitão a renunciar a seu posto – possivelmente atendendo ao seu próprio interesse, uma vez que tomou o trono de São Pedro apenas onze dias depois.
A renúncia de Celestino V foi o clímax de um domínio de cinco meses, de julho a dezembro de 1294, tempo durante o qual serviu como representante supremo de Cristo na Terra. Como veremos, nada deu certo para ninguém, exceto talvez para Gaetani.
Quando um homem é elevado para o trono de São Pedro, ele não é eleito por um certo tempo. Ele se torna papa para sempre. Durante os dois mil anos de história do papado, Pedro Morrone foi o único homem que renunciou e foi embora.
Há três razões pelas quais eu quis contar essa história. Primeiro, tenho certa fascinação pela Idade Média. Em particular, pelos séculos XII e XIII, tempos de fé, violência e descobertas, uma época repleta por histórias dramáticas e momentos essenciais. Escrevi e editei muitos livros sobre a vida e o impacto de algumas das figuras mais conhecidas e consagradas desse período, tais como Francisco de Assis. Em contraste, a história interessantíssima de Celestino V não é muito conhecida.
Ouvi falar pela primeira vez de Celestino V uma década atrás, enquanto fazia uma pesquisa na Itália para um livro sobre os herdeiros do legado espiritual de São Francisco. Esse “papa angélico” – como alguns de seus contemporâneos o chamavam – foi condenado a moer nos arredores do inferno para sempre por Dante, que talvez o tenha conhecido. Dante escreveu que Celestino V, “por covardia, recusou o irrecusável.” Esse era o modo do poeta de dizer que o homem sobre quem estamos falando era um desertor e um fracassado. Mas como poderia Celestinos ser ao mesmo tempo angélico e covarde? Como poderia ele ser papa e também merecedor do inferno? Claro, há muitas contradições sobre essa história que devem ser esclarecidas.
A segunda razão pela qual desejei contar esta história foi a constatação de que poderia ter sido diferente se Celestino houvesse continuado no poder, ou se ele tivesse alcançado qualquer sucesso durante as quinze semanas em que foi papa. Como sua eleição preencheu a imaginação das pessoas que esperavam por mudanças? Como esse papado desastroso afundou tais esperanças? “Foi ele conquistado por sua fraqueza inata ou por uma combinação de patifaria e intriga anormal?” perguntou a escritora inglesa Anne MacDonell um século atrás. Proponho responder a essas questões.
Como um protestante de berço que se converteu ao catolicismo após anos de pesquisa e discernimento, me encanto mais facilmente do que outros por reformadores espirituais. Celestino era em seu coração um reformador. Durante os sessenta anos que passou como um ermitão, ele adotou para si medidas severas, e empreendeu um retorno aos princípios originais. Ele não pôde encontrar uma ordem religiosa que lhe permitisse que apenas rezasse e jejuasse.
Ao fundar sua própria ordem ascética, ele modelou-a na lenda de João Batista, que vivia deliberadamente no deserto jejuando continuamente (exceto aos domingos). Pedro ansiava por uma igreja que regressasse ao espírito original de pureza e simplicidade. Alguns, ao passar dos anos, acabaram vendo nele um precursor de homens como Martinho Lutero, cujos escritos iniciaram a Reforma Protestante. Uma das explicações para os gestos de Pedro é que ele foi um idealista.
O terceiro motivo para eu escrever este livro é que Pedro Morrone acabou aparecendo em manchetes no século XXI. Um ano depois de eu ter começado minha pesquisa, em abril de 2009, um terremoto aconteceu em Áquila, na Itália, fazendo tremer tudo incluindo as paredes de uma grande igreja que Pedro construiu, e na qual foi enterrado. Dois dias depois, houve um incêndio e a mídia de todo o mundo cobriu a história de bombeiros correndo para o local e tentando recuperar os restos sagrados e as relíquias de Pedro .
O essencial da história de Celestino V foi contado e recontado por vários dias. Os restos sagrados foram recolocados num local seguro e depois levados de volta para a igreja numa urna de vidro. Naquela ocasião, estava claro que os católicos tinham opiniões diferentes das de Dante sobre Celestino. Os jornais italianos os parafraseavam, tratando a descoberta dos restos mortais intactos como um milagre de São Celestino V. (Ele foi canonizado dezessete anos depois de sua morte, e todo tipo de milagre tem sido atribuído a ele durante os últimos seiscentos anos).
Alguns anos antes, em 2004, Celestino foi discutido na mídia mundial quando o secretário de estado do Vaticano deu a entender que o Papa João Paulo II estava considerando renunciar. Celestino apareceu no livro de Dan Brown, Anjos e Demônios, e na adaptação para o cinema de 2009. Mas Brown não foi o primeiro escritor contemporâneo a mencionar Celestino. O “papa angélico” foi assunto de um romance histórico de Ignazio Silone, publicado em italiano em 1968. O dramaturgo inglês Peter Barnes escreveu uma peça sobre Celestino. E suspeito que a história de Pedro deve ter inspirado Morris West a escrever seu romance Os Palhaços de Deus, sobre um papa fictício do século XXI que abdica sob coação.
E há mais uma razão pela qual acho que essa história interessaria os leitores atuais. O papa Bento XVI, recentemente, homenageou a memória e o legado do papa ermitão do passado medieval do catolicismo. Em abril de 2009, quando visitou o túmulo de Celestino, ele fez mais do que rezar diante dos restos mortais. Sem explicação, o papa passou vários minutos lá – removeu o pálio que estava em seus ombros e o pousou gentilmente na urna de vidro de Celestino. Pálio é um ornamento religioso em formado de Y que lembra uma rígida e longa echarpe. É um dos principais símbolos da autoridade episcopal do papa. Foi uma grande homenagem a Celestino V.
Há bem poucas informações comprovadas da vida desse homem que deixou o trono de São Pedro vazio. A Idade Média foi uma época turbulenta da qual as fontes de pesquisa mais confiáveis são anais da corte e da igreja, mas tais recordações (as que não foram perdidas) podem não ser verdadeiras. De fato, uma das razões pelas quais a eleição de Celestino V a papa foi tão controversa foi que ele era relativamente ignorante quando comparado aos riquíssimos cardeais, que vinham de famílias privilegiadas. Ele quase não falava latim, a língua oficial da igreja.
Ao contar a história de Pedro, confiei em uma variedade de fontes. Pedro escreveu uma autobiografia, o que era anormal naqueles tempos, e podemos confiar nela para alguns dos detalhes do início de sua vida. Também procurei por histórias do papado medieval nas quais Celestino V aparece. Há muitas histórias das ordens mendicantes (todas as cinco, incluindo os Franciscanos e os Dominicanos, foram criadas na época em que Pedro vivia), dos ermitões medievais, de movimentos heréticos e das multifacetadas Cruzadas (cinco das nove ocorreram enquanto Pedro vivia). Estão sendo feitas traduções para o inglês de documentos daquele período de tempo na Itália; e esses trabalhos iluminam temas tais como as estruturas locais do poder religioso e secular, a dependência de áreas rurais das cidades, guerra e violência, lei e ordem, doença e medicina, educação e família. Usei essas fontes e outras para retratar a era de Pedro, as pessoas e as circunstâncias de sua vida.
Há outras fontes de pesquisa sobre a religiosidade católica do século XIII, as lutas internas entre facções religiosas, a independência crescente dos leigos – todas as quais servem para iluminar as ações de Pedro como irmão, filho, ermitão, abade, fundador de uma ordem, peregrino viajante, construtor de igrejas, pecador, penitente, arrecadador de fundos e católico fiel. Eu descrevo Pedro e os personagens em sua história e imagino seus irmãos espirituais, que estiveram com ele no final de sua vida em uma cela de prisão e o ouviram contando histórias. Penso nos membros da cúria papal (conselheiros, administradores, assessores) que cercaram e perturbaram Celestino durante suas quinze semanas desastrosas como vigário de Cristo. Algumas dessas cenas foram imaginadas após ter passado várias horas olhando manuscritos e pinturas, e lendo cartas e documentos históricos de homens e mulheres de seu tempo e local. Usando todos os recursos, mostro-lhes o que era ser um ermitão e um papa no turbulento, esperançoso e violento século XIII.