Dilma e o papel das usinas na cheia do Madeira

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 14:28
Dilma observa a inundação
Dilma observa a inundação

O texto abaixo foi publicado originalmente no blog meninamalouca. A autora é
professora de Linguística da Universidade Federal de Rondônia, UNIR.

De Rondônia

No sábado passado Dilma esteve em Porto Velho para apreciar a extensão da enchente que ainda não recebeu a devida atenção no Brasil. Foram registrados 19,5 metros acima do nível normal do rio Madeira – e a tendência ainda é subir. Ela sobrevoou o Rio Madeira e só então acolheu o pedido de calamidade pública pleiteado pelo prefeito da cidade.

Segundo matéria publicada na Folha, Dilma colocou a culpa pela cheia histórica do Madeira na Natureza, isentando as usinas (Santo Antônio e Jirau) de qualquer responsabilidade pelo desastre que é
(i) o isloamento do Acre por terra,
(ii) o alagamento extenso de Bolívia, Acre, Rondônia e Amazonas,
(iii) os desalojados e desabrigados sem chão, casa e território e
(iv) as futuras doenças que virão depois que a água baixar.

Dilma defendeu as usinas usando a fábula do lobo e do cordeiro (na versão de La Fontaine, porque a de Esopo não apresenta a argumentação baseada na posição do cordeiro e do lobo em relação ao rio) da seguinte forma: o cordeiro argumenta que está abaixo do lobo, portanto não pode ter sujado a água que o lobo bebe.

Para Dilma, a Bolívia está acima, “sujando” nossa água. E as usinas, pergunto eu: onde estão? Fora do rio? Santo Antônio fica 7 km acima da capital de Rondônia e a energia acumulada ali vem em linha reta contra Porto Velho (que fica na curva do rio). Santo Antônio fica acima do Baixo Madeira – que agora está dentro do Madeira.

O terceiro parágrafo do texto da Folha explica: não é a Bolívia que precisa ser responsabilizada, mas as chuvas que caíram na Bolívia. Na fábula, o lobo representa o tirano que impõe sua razão arbitrária para satisfazer seus desejos e o cordeiro representa a vítima. Nas palavras de Dilma, a chuva é o tirano que impõe sua razão arbitrária para satisfazer seus desejos e o povo ribeirinho é a vítima.

E as usinas? Para Dilma, estão fora de questão, estão fora do rio Madeira.

A moral da história (porque as fábulas sempre trazem uma moral) contada por La Fontaine ficou assim na tradução de Ferreira Gullar:
Onde a lei não existe, ao que parece,
a razão do mais forte prevalece.

Na história de Pedro e o lobo, de Prokofiev, que igualmente existe em várias versões, temos novamente dois pólos. Se no Lobo e o cordeiro os pólos eram ocupados por vilão e vítima, o lobo de Pedro está num pólo e no outro estão Pedro e o pássaro e o pato e o gato e o avô e os caçadores.

Contudo, o lobo nessa história não é vilão, é apenas um lobo subordinado às leis da Natureza. E Pedro, pássaro, pato e gato não são vítimas, mas um coletivo doméstico que, sem preparo algum, mas com muita vontade de se divertir, se aventura na natureza selvagem.

Na história contada pelo músico russo, Pedro tinha sido proibido pelo avô de passar (sozinho) da cerca que delimitava a floresta. Pedro abre a porteira na cerca e o pato, gato e pássaro o seguem, felizes por poderem explorar uma nova região.

Na versão da Disney, Pedro tinha 6 anos e queria caçar. Ainda nessa versão, ao entrarem no terreno desconhecido, o pato vê o lobo em todos os lugares – o que não se confirma – e todos brigam com ele. Essa briga barulhenta chama a atenção do lobo que vem e engole o pato (o pato é vítima fatal em todas as versões). Pedro então rapidamente traça um plano com o pássaro de capturar o lobo e salvar a todos de suas garras.

Implantar usinas hidrelétricas de fio d’água nos rios amazônicos significa, metaforicamente falando, atravessar a cerca que separa o mundo conhecido e controlado da floresta em que há um lobo.

Sair destemidamente à caça do lobo e levar outros desavisados consigo é irresponsável como foi irresponsável construir e fazer funcionar duas usinas numa das maiores sub-bacias amazônicas apesar da escassez de estudos apontada por vários órgãos, inclusive o Ibama.

Abrir a porteira sem antes calcular os riscos foi tão desastroso como liberar as licenças para as usinas com estudos de impacto contestados. Por isso, através de uma liminar, a Justiça Federal determinou no dia 10
que as usinas Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, atendam as necessidades básicas – moradia, alimentação, transporte, educação e saúde – das famílias atingidas pela cheia do rio Madeira que moram acima de cada uma das hidrelétricas, sob pena de multa diária de R$ 100 mil para cada uma delas.

Segundo o juiz federal Herculano Martins Nacif, da 5ª Vara Ambiental e Agrária de Rondônia, há vínculo entre a cheia histórica do rio e as usinas instaladas no local. A decisão também prevê que um novo estudo de impacto ambiental seja feito no local.

Os ribeirinhos e (sócio)ambientalistas foram os primeiros a prever as inundações e os desbarrancamentos. Suas vozes não tiveram eco nas audiências com os consórcios nem fora delas. Os ribeirinhos foram removidos, reassentados, desalojados, desabrigados primeiro. Como o pato que previu a desgraça e pagou o preço, os ribeirinhos pagaram o pato.

O lobo de Pedro não é o vilão, mas a conjuntura desfavorável. As chuvas deste ano foram mais intensas em janeiro/fevereiro que nos anos anteriores. As usinas não previram tanta chuva e não reagiram a tempo. Represaram a água que vinha da Bolívia (inundando tudo para cima das usinas).

Ninguém jamais culpou as usinas única e exclusivamente pela cheia do Madeira. A ação delas provavelmente teve o mesmo peso que a ação das chuvas. Mas as chuvas não assinam termo de responsabilidade, contrapartida, compromisso moral e social.

Dilma tem um compromisso com o assim-chamado desenvolvimento. No âmbito do PAC, o governo federal liberou recursos para a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau. Quando Dilma relembrou a fábula do lobo e do cordeiro, ela foi porta-voz do empresariado: o mais forte sempre encontrará pretexto para fazer a sua razão prevalecer.