O papel dos artistas e intelectuais diante da ameaça autoritária, segundo Milton Hatoum. Por Paulo Henrique Arantes

Atualizado em 3 de novembro de 2018 às 11:04
Milton Hatoum, em foto de Ricardo Bastos

Milton Hatoum é um escritor muito discreto. Quase não dá entrevista. Mas, quando fala, não passa despercebido. Nesta entrevista à revista da CAASP, ele abordou, entre outros temas,  o papel dos intelectuais neste momento de ameaça à democracia. A entrevista foi concedida antes do primeiro turno das eleições, mas se mantém atual.

Você acaba de receber o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano. Qual o papel dos intelectuais neste momento por que passa o país?

Milton Hatoum – Quando a democracia é ameaçada, por exemplo com alusões a fraude nas eleições, com manifestações de alguns militares, com sinais explícitos de autoritarismo e obscurantismo, eu acho que os intelectuais, os escritores, os artistas e a sociedade de modo geral devem se empenhar em garantir o processo democrático. De modo geral, o intelectual deve ter uma visão humanista, de compreensão dos valores, de compreensão da História, das contradições sociais, das injustiças.

A perspectiva humanista é aquela de que fala um grande intelectual palestino americano, Edward Said, em um livro brilhante chamado “Humanismo e Crise Democrática” – eu acho que, inclusive, é um livro que interessa aos advogados. Ele tem outro livro, chamado “Representações do Intelectual”, que por sinal eu traduzi. A perspectiva do intelectual humanista é sempre dizer não ao poder, falar a verdade ao poder, sem escamotear a verdade e sem ser fiel aos dogmas.

Há uma corrente intelectual no mundo denunciando novas formas de solapar a democracia, mediante conspirações sem uso das armas. Inclusive, o livro mais falado do momento é “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky. Você enxerga essa tendência?

Acho que são ondas cíclicas, que vão e voltam, dependendo muito da crise do capitalismo, de uma crise sistêmica do próprio capitalismo. Na Europa, a ascensão da extrema direita se deve muito à questão dos refugiados, do desemprego e da crise econômica de modo geral. Uma das teses mais simplórias da extrema direita francesa, do Le Pen e da filha dele, é a de que se você tirar os cinco milhões de árabes da França, entre argelinos, marroquinos, negros e africanos, você resolve o problema.

(…)

Como você avalia considerações de que na época do regime militar havia uma guerra, de que os dois lados cometiam atrocidades?

Não era uma guerra. Foi um golpe civil-militar que substituiu um regime eleito pelo povo. É falsear a História dizer que houve uma guerra, como se o país estivesse conflagrado, como se houvesse um confronto armado. Havia antes um governo legítimo e, depois, houve uma repressão brutal. Se houve uma guerra, foi uma guerra extremamente desigual.

Quando se fala da violência no Brasil, as pessoas esquecem de que a República Velha foi inaugurada com o genocídio na Guerra de Canudos, no fim do Século XIX, quando 20 mil sertanejos pobres, incluindo mulheres e crianças, foram executados pelo Exército. Eles não eram comunistas – só na cabeça de um louco, ignorante, dizer que Antônio Conselheiro era um líder comunista. Ele procurava uma nova forma de organização social, era contra a República etc. Em 1964, não houve uma guerra, houve um assalto ao poder.

Você acha que as forças – políticas e econômicas – que deram o golpe em 1964 estão vivas?

Estão vivíssimas, nos meios militar e civil.

No meio militar, eu diria que há algumas manifestações ou declarações bastante irresponsáveis. Eu acho lamentável ouvir de um general que a malandragem e a indolência do brasileiro vêm do africano e do indígena. Minhas origens indígenas tremeram. É um cara que não tem noção da formação do povo brasileiro. Todo brasileiro tem na sua alma, nos seus costumes, uma forte herança das culturas africana e indígena, isso está em nós, está nele inclusive.

Há um saudosismo. As pessoas que não têm nenhuma formação histórica, literária, de ciências humanas, qual é o argumento delas? É um argumento simplificador, e todo argumento simplificador é perigoso, porque a complexidade é tão grande que qualquer argumento muito simplório é perigoso. No fundo, esse candidato obscurantista não tem nenhum projeto para o Brasil, ele não sabe nada do Brasil.

É incrível que depois de declarações explicitamente racistas ele não tenha sido punido. Ele foi poupado enquanto outros não foram.

(…)

Falar em qualquer tipo de cota no Brasil revolta em muita gente.

Um dia nós vamos ter que derrotar essa mentalidade escravagista – no fundo é isso. Os resquícios da escravidão ainda são fortes no Brasil.