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Nos EUA e no Brasil, o paradoxo de um povo armado que pede paz. Por Mauro Donato

Memorial em homenagem às vítimas do tiroteio em Dallas

 

As mais recentes mortes de negros pelas armas de policiais americanos suscitou os protestos que geraram um desdobramento trágico em Dallas: munido de vingança, Micah Johnson matou 5 PMs. A coisa tomou volume, os protestos aumentaram, assim como a repressão policial. Mais de uma centena de presos na sexta-feira, outros 200 no sábado. Uma espiral preocupante, de final imprevisível, mas de origem mais que sabida.

Quando os policiais abordaram e depois imobilizaram Alton Sterling em um posto de gasolina, ao constatarem a presença de um revólver, um deles gritou “Arma!!” e em seguida atirou várias vezes contra o homem. Qual o espanto do policial ao encontrar uma arma na cintura de um civil americano? Isso lá é tão normal quanto portar um lenço. Aliás, nos dias de hoje certamente é mais fácil encontrar uma pistola do que um lenço. Já Philando Castile, que foi parado numa blitz, alertou prévia e prudentemente ao policial: “Estou armado, mas irei apenas pegar os documentos”. Ao colocar a mão no bolso levou 4 tiros e morreu na frente da namorada e sua filha.

É aí que reside o problema. De todos os casos em que negros foram mortos pela polícia este ano nos Estados Unidos, apenas 13% não estavam armados. Os EUA são o país número 1 do mundo em termos de posse de armas per capita (há mais de uma para cada um). Saber que o cidadão está armado não predispõe o policial a agir com menos ‘cordialidade’?

Ele já vai para a abordagem com a adrenalina nas alturas e pensando no risco altíssimo que está correndo mesmo que seja numa situação rotineira como uma blitz por uma lanterna de carro quebrada, como foi o caso de Philando Castile ou de uma queixa pela presença de um camelô vendendo CDs, situação de Alton Sterling. Daí, quando duas pessoas armadas se encontram, vive-se um clima de duelo de faroeste. Sobrevive quem saca mais rápido.

Na exacerbação dos ânimos diante dos acontecimentos, o componente racismo não pode ser desconsiderado. ‘Black lives matter’ é o grito que deve ser dado mais forte, mas as condições para que tudo isso ocorra se devem ao fato de todos estarem armados. Brancos e negros. Ainda na sexta-feira sob choque dos ataques, a secretária da Justiça, Loretta Lynch, pediu ao povo americano que não permita que mortes se transformem em algo normal. Ora, armas servem para isso, o que esperavam?

O quadro americano transforma o país no paradoxo de uma população armada até os dentes que deseja paz. Como armas não têm essa finalidade, não irão alcançar nunca, por óbvio. E essa mensagem precisa ser muito bem escutada e observada aqui abaixo da linha do equador. Afinal de contas, mesmo com seus casos escabrosos, a polícia americana é muito menos assassina que a brasileira. Enquanto a estadunidense matou 491 pessoas no primeiro semestre deste ano (país todo), só no Rio de Janeiro foram 645 cadáveres. A polícia paulista também mata mais que todas as polícias americanas juntas há muito tempo. Já imaginou se a revolta dos negros americanos contagiasse?

Mas voltemos ao tema pistoleiro. Mesmo com sua população armada, os Estados Unidos tiveram 11 mil mortes por arma de fogo em 2013. O Brasil ‘desarmado’ teve 42.416, quase 4 vezes mais. Se com uma disparidade como essa soa cinismo o pedido da secretária da Justiça americana, o que diríamos caso a revogação do estatuto do desarmamento vigore, como é da vontade de uma parcela desmiolada da população, cafajestemente representada pela bancada da bala?

Em 2005, um referendo popular demonstrou que a população brasileira não concorda com a venda de armas de fogo e de munição em todo o território nacional. E mesmo assim estamos entre os 11 países com mais mortes por este método em uma lista de 90 nações. Estamos à frente de muitos países em guerra, ‘oficialmente’ falando. Mas políticos mal intencionados e parasitas do dinheiro da indústria armamentista tentam reverter isso. Deles, não se pode esperar nada. Quem precisa olhar para os EUA e analisar se é isso que queremos somos nós mesmos, caso não queiramos futuramente ouvir um apelo patético como o da senhora Loretta Lynch.

Mauro Donato

Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo.

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