Destaques

O paradoxo do caso Lula: se o MPF ganhar, Moro perde. Por Lenio Streck

Lima, Moro e Dallagnol

Publicado no Conjur

POR LENIO STRECK

Este artigo também poderia ter o seguinte título: Para além da Lei de Münchhausen, que se ergue pelos próprios cabelos, existe a lei da gravidade. Bom, mão à obra. Muito já se escreveu sobre o julgamento que ocorrerá nesta quarta-feira (24/1). O caso Lula. De Ferrajoli à Zaffaroni, passando por inúmeros juristas brasileiros, afora o livro que contou com mais de 100 juristas pátrios.

Claro que ainda há muito a dizer. A começar pelo silêncio de parcela expressiva da comunidade jurídica, que, para mim, se deve ao “fator torcedor”. Coisa nossa. Quando Temer foi vítima de prova ilícita, poucos tiveram a coragem de apontar isso. Os leitores sabem que fui um dos primeiros a denunciar as provas ilícitas contra Dilma e Lula e também as provas ilícitas contra Temer.

Já no calor dos acontecimentos. E sobre as ilegalidades nos pedidos de prisão de Sarney e outros. E a flagrante ilegalidade das conduções coercitivas. Permito-me, assim, pela enésima vez, repetir meu bordão: o Direito não deve ser corrigido por argumentos morais e políticos. O Direito tem de resistir à moral e à política. Quem filtra a moral é o Direito e não o contrário.

Aliás, aqui me permito dizer: estou dizendo, nada mais, nada menos, do que disse o Corregedor de Justiça do Tribunal de Justiça na ConJur de 21.1.2018: “Juiz não pode julgar de forma ideológica, nem com os olhos voltados para política“. Por isso, acrescento, quem vibra com gol de mão não pode mais se queixar de mão alguma. E a Constituição Federal é o remédio contra maiorias que não conseguem se segurar e caem no “fator Merval Pereira”, responsável pela Escala RR- Raiva-Richter: quando passa do índice 8, a mídia treme. É o caso do julgamento de Lula. Há um terremoto no ar.

Pois o silêncio de parcela enorme da comunidade jurídica é cortado pelo grito de um jornalista — insuspeito por suas notórias diferenças políticas com o PT e com a esquerda, especialmente Lula. Falo de Reinaldo Azevedo, que vem apontando, de há muito, que mesmo contra inimigos devemos respeitar o devido processo legal. Reinaldo e eu temos uma coisa em comum: o conservadorismo. O meu, um conservadorismo constitucional — minha ortodoxia em relação a Constituição Federal; o de Reinaldo, um conservadorismo político, atento aos fatos que podem colocar por terra o cerne da democracia: o respeito ao Estado de Direito.

Nenhum dos dois sobreviveríamos fora da democracia. Daí nosso zelo. Por isso, Reinaldo tem feito análises melhores que parcela dos juristas. Que silenciam sobre o caso ou que substituem o Direito por seus juízos morais ou moralistas. Reinaldo deveria receber o título de “jurista honorário”. Porque não se comporta como torcedor.

Em programa de rádio destes últimos dias que antecedem o julgamento, Reinaldo deixa claro o que até um jornalista sabe (mas parece que os juristas, não): provas tem de ser robustas. E ele disse neste link: Ministério Público acusou Lula de ter recebido propina em três contratos. Os contratos eram da Petrobras. A denúncia (íntegra aqui) oferecida pelo Ministério Público Federal é clara ao afirmar com todas as letras, que os recursos que resultaram no tríplex do Guarujá derivaram de três contratos mantidos por consórcios integrados pela OAS com a Petrobras: um para obras na Refinaria Getúlio Vargas-Repar e dois para a Refinaria Abreu e Lima. Mas, vejam as contingências.

Moro condenou Lula, mas não por isso. Condenou por ato de ofício “indeterminado”, figura “nova” no direito. Ou condenou “porque sim”. No fundo, Moro ignorou a denúncia. Que, na verdade, serviu mesmo para ele fixar sua competência. E se fi(x)ou unicamente na delação de Léo Pinheiro (sobre delações servindo como prova plenipotenciária nem é preciso mais falar — há jurisprudência do próprio TRF-4). Pois, fixada a competência, Moro já não precisava mais do “nexo causal Petrobras-Propinas”, tanto é que formalmente disso abriu mão ao responder aos embargos de declaração. Vejam o que disse o juiz Sérgio Moro:

“Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”.

Bingo. Desde o início Reinado avisou sobre isso (e a defesa também, é óbvio). Também falei sobre isso. Qual é o busílis? Simples: O que segura(va) a competência de Moro na “lava jato” é(r)a o nexo causal dos fatos com negócios escusos envolvendo a Petrobras. Mas, como Moro disse o que disse nos embargos, o que fica em pé? Reinaldo (volto a ele porque deu lição nos juristas torcedores) deitou e rolou falando desse fato. E ele tem razão. Porque, se o MPF ganhar o recurso, quem perde é Moro (Moro, paradoxalmente, terá que torcer contra o MPF!).

Só que Moro, ao dizer que não havia dinheiro dos contratos da Petrobras, perde-se nas palavras. Sem dinheiro da Petrobras, cessa tudo o que a antiga musa canta. Competência não se escolhe. Simples assim. A linguagem é um pharmakon: remédio, veneno ou cosmético… Palavras são lancinantes. O que Moro disse nos embargos… embarga. Bingo de novo. Palavra é pá-que-lavra. E, no caso, os sulcos lavrados foram profundos.

Se fosse possível representar em uma frase os paradoxos da sentença (e do processo), talvez a melhor seria a dita pela testemunha Grigóri Vassílievitch no julgamento de Dmítri Karamázov, no clássico Os Irmãos Karamazov, quando se discutia uma prova, a saber, o dinheiro que desaparecera da casa da vítima, pai do acusado:

“— não vira nem ouvira literalmente ninguém falar daquele dinheiro, até o momento em que todos começaram a falar nele”.

Dostoiévski inventou a pós-verdade! Lá, n’Os Irmãos Karamazov, como cá, no julgamento de Lula, prova é narrativa; é crença; é pós-verdade. E esta questão é de suma importância. Por que digo isso? Simples. Se alguém diz que o futuro do Brasil depende desse julgamento, é um exagero, é claro. Mas, sem dúvida, se alguém afirmar que o futuro do Direito e da teoria da prova dependem desse julgamento, terá toda a razão. Se até aqui já houve tantos atropelos à Constituição Federal, vamos ver o que ocorrerá depois…

Vários institutos jurídicos dependem desse julgamento. O que ensinar nas aulas sobre prova? Ensinar que “prova é uma questão de crença, de probabilismo”? Juristas de todo o país: isto é coisa séria. Mataremos Malatesta, Cordero, todas as teorias garantistas?

Bom, não sei como isso vai terminar. Uma coisa é certa: Direito não pode ser substituído por argumentos morais e políticos. Parcela considerável dos juristas (falo só de quem tem a obrigação de conhecer um pouco de teoria da prova e devido processo legal) pode e tem o direito de odiar o réu (neste caso ou em tantos outros). Todavia, tem de saber qual é o preço a pagar. E tem de responder à pergunta: será que os fins justificam os meios? Será que o Brasil vai retroceder ao inquisitivismo?

No caso Lula, independente de outras questões que possam exsurgir, uma coisa ficou patente. Se acreditarmos no que disse o juiz Sergio Moro nos embargos de declaração — e não temos motivos para não acreditar no que disse — então ele mesmo tirou o chão onde pisava. Sua competência estava pendurada, calcada, fundada na Petrobras. Se ele mesmo disse que “este juízo não viu nada em relação à propina da Petrobras”, então ficou um vazio. Um sem chão.

Então, se Moro retirou o próprio chão onde pisava, resta saber ser o TRF-4 fará como o Barão de Münchhausen, quem, afundando no pântano com seu cavalo, conseguiu se erguer a si mesmo, puxando-se pelos próprios cabelos. Só que “puxar-se a si mesmo pelos próprios cabelos” — já que Moro retirou o próprio chão — é um paradoxo. E paradoxos são coisas que são impossíveis de explicar. Porque, simplesmente, são… paradoxos. A ver, pois!

Como constitucionalista, quero apenas dizer que esse julgamento não é o Armagedom, a batalha final entre o bem” e o mal” (quem seria um e o outro?). Para além da “lei de Münchhausen”, existe a lei da gravidade! E o dia seguinte!

Diario do Centro do Mundo

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
Diario do Centro do Mundo

Recent Posts

Erika Hilton aciona MPF contra pastor que revelou ter beijado própria filha

A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) acionou o Ministério Público Federal (MPF) contra o pastor…

58 minutos ago

“Alma amava o Brasil”, diz amiga de israelense encontrada morta no Rio

A jovem israelense Alma Bohadana, que foi encontrada morta na noite de segunda-feira (6) na…

2 horas ago

Oposição quer levar caso da Sabesp ao STF após Justiça manter votação em SP

Os partidos de oposição planejam apresentar uma ADI ao STF após o Tribunal de Justiça…

2 horas ago

Sumido, Mourão reaparece para sugerir GLO Eduardo Leite

O senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) disse que conversou com o governador do Rio Grande do…

2 horas ago

“Vai acontecer com frequência”, diz Carlos Nobre sobre crises climáticas como do RS

Em entrevista concedida ao DW Brasil, o climatologista Carlos Nobre, cuja carreira foi construída no…

2 horas ago

A arapuca que direita gaúcha gostaria de armar para Lula. Por Moisés Mendes

Publicado originalmente no "Blog do Moisés Mendes" É romântica, altruísta e algumas vezes oportunista a…

2 horas ago