O pé do Flavinho, a primeira vítima da liberação das armas no governo Bolsonaro. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 19 de janeiro de 2019 às 7:33
Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz

POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça

Inteligência não parece ser um ativo prestigiado na família Bolsonaro. Coisa distinta de esperteza, essa, sim, em abundância. A diferença é que uma é construída, com esforço, pedrinha por pedrinha, até formar um castelo de conhecimento; a outra, fruto da perspicácia oportunista e rasteira, mui encontradiça em animais predadores, é parte da herança genética talvez, sem muito valor agregado.

O episódio da reclamação de Flávio Bolsonaro ao STF ilustra bem o caso, como esperteza em abundância, sem inteligência nenhuma, leva tudo a perder.

Pois bem. Desde as vésperas da investidura do mito da extrema direita brasileira no cargo de presidente da República, o escândalo em torno das movimentações financeiras do ex-motorista de seu júnior, Flavinho, vem ocupando a mídia sem qualquer explicação razoável por parte dos suspeitos.

Ao que tudo indica, Flavinho fazia penas o que grande número de parlamentares de baixo clero fazem Brasil afora: contratam assessores com a condição de que lhes entreguem um portentoso naco de seus ganhos no final do mês. Isso se chama extorsão. Mas infelizmente é muito comum.

O que não é comum é essa dinheirama extorquida trafegar sem pejo pelas contas de familiares do parlamentar, como a do pai ou da madrasta. Mas, como inteligência não abunda no clã, provavelmente nem sabiam que existe uma categoria de contas bancárias mais detidamente observadas pela inteligência financeira do governo federal, o COAF: aquelas que pertencem a autoridades politicamente expostas, dentre as quais os parlamentares.

A lei é clara: observada movimentação suspeita, o COAF compartilhará a informação com o ministério público. Quem ocupa funções estratégicas no estado tem que se expor a esse escrutínio permanente de seus ganhos. É um ônus justo para esses atores, instrumento relevantíssimo de combate à corrupção adotado a partir do… sim! … governo Lula!

Caiu na rede, é peixe. Não interessa se é piaba ou merlim! É a coisa mais normal do mundo. Afinal, quem não deve não teme, não é, bolsominions? Expliquem-se, autoridades!

Mas o clã acha que não deve explicações a ninguém. Afinal, até hoje, seu padre-padrone não se desculpou por dizer a colega parlamentar que não merecia ser estuprada, nem se posicionou sobre a sordidez da campanha mentirosa da mamadeira de piroca. No melhor estilo de coronel do cafundó do Judas, nossos personagens de baixo-clero dão carteirada no seu dia a dia: ninguém pode com eles. E, assim, deram default. Seus colaboradores e familiares não compareceram ao ministério público quando chamados! Não deram pelotas e ficou por isso mesmo.

Até o motorista da família, com talento para dancinhas hospitalares com jograis, não se sentiu obrigado a dar satisfação, mesmo que a dinheirama toda tenha trafegado por sua conta. 1,2 milhões num ano só, para alguém que recebia bem menos do que um décimo disso no período e fez, até, depósito na conta daquela que hoje é a primeira dama do país.

Fico só a imaginar o que aconteceria se tivessem descoberto esse tipo de depósito na conta de Dona Mariza! O mundo viria abaixo e o juizinho de piso, hoje dublê de ministro da justiça, faria um carnaval com escutas telefônicas a serem amplamente divulgadas pelo Jornal Nacional e pela Globo News. A severidade das instâncias superiores se faria sentir com sucessivas decisões a coonestarem a prática abusiva vinda do judiciário provinciano…

Mas, Flavinho achou-se esperto. Ficou incomodado com a insistência das notícias envolvendo seu Queiroz-que-traz-o-dinheiro-pra-nós. Aborreceu-se ou, como se diz no jargão que cursa nas redes sociais, ficou “xatiado”. E aí decidiu matar a formiga com um foguete Stinger. Foi ao STF invocar seu foro privilegiado. Foi dizer que o COAF entregou seus dados ao ministério público sem autorização judicial.

É tudo que não podia fazer.

Primeiro, porque o clã sempre bateu no instituto da competência por prerrogativa de função como se fosse um escudo a blindar personagens duvidosas contra o combate à corrupção, à moralidade administrativa. Temos aí, portanto, não só uma questão de coerência, mas também de boa fé. O clã jamais poderia invocar o escudo a seu favor.

Em segundo lugar, porque Flavinho, mesmo que eleito e diplomado, ainda não tomou posse como senador e, portanto, ainda não tem foro no STF.

Em terceiro lugar, porque os fatos se referiam a sua atividade como deputado estadual, não estando, portanto, acobertado pelo foro especial do STF, segundo sua mais recente interpretação da constituição.

Em quarto lugar, porque quem estava a ser escrutinado, num momento inicial, era seu motorista, havendo apenas indicativos de que tinha se locupletado do resultado dessa inusual movimentação financeira. Mas, ele mesmo, Flavinho, era mais alvo de especulação midiática – justa especulação, diga-se de passagem – do que de ação oficial das autoridades persecutórias.

Mas, o esperto, ao antecipar a falsa discussão sobre se foro, deu um tiro no pé, porque se colocou no centro do procedimento investigatório, saindo do conforto de sua periferia. É como se admitisse como natural que deveria ser ele o alvo principal das perquirições do ministério público – e não o motorista pé de valsa! Com isso se fez automaticamente cliente da procuradora-geral da República e o foguete Stinger, ao invés de atingir o processo, atingiu o clã.

Bom, claro que contou com a benevolência do STF ou, pelo menos, de seu generoso presidente ad hoc, que, prontamente, achou que poderia matar a investigação com um despacho de férias. Ledo engano, a peça de teatro que começara num palco de subúrbio foi transferida para a Broadway e só está a começar.

Como diz a sabedoria popular lusa: a esperteza, quando é muita, vira bicho e come o dono!