O que a revolta no Chile tem a ver com as “jornadas de junho” no Brasil. Por Victor Farinelli

Atualizado em 22 de outubro de 2019 às 9:41
Protesto de estudantes em Santiago do Chile

POR VICTOR FARINELLI

“Não é só pelos 20 centavos”, dizia o slogan daquelas jornadas que a esquerda brasileira tenta esquecer por terem marcado o início de uma reviravolta política.

Eu resisto bastante à ideia de que só isso bastou para levar a direita ao poder, como muitos dizem, tanto que o PT venceu as eleições de 2014, e com a questionada Dilma, não com Lula, que era o seu melhor candidato e foi cogitado para liderar a chapa.

Por que começo lembrando daquele episódio para falar dos acontecimentos de hoje no Chile?

Bom, como muitos já perceberam, o estopim dessas manifestações foi o aumento de 30 pesos no preço do transporte público em Santiago, decretado poucos dias antes.

Com o passar dos dias, o conflito foi acumulando apoio social à medida que diferentes grupos de indignados, não só estudantes e usuários do transporte público, foram somando suas demandas aos gritos de protesto, até que o slogan passou a repetir aquele do Brasil há seis anos: “Não é só pelos 30 pesos”.

E assim como naquele Brasil de 2013, o problema de agora do Chile realmente não é só os 30 pesos.

O aumento sequer foi o primeiro no preço do transporte este ano, sem contar os também vários aumentos nos preços dos combustíveis, da eletricidade e de outros serviços básicos.

E essa sensação tampouco está inspirada somente nos problemas gerados este ano.

Além dos já citados aumentos, o Chile enfrenta situações terríveis com o desemprego e a precarização dos trabalhos (mesmo tendência vivida no Brasil, mas lá sempre foi assim graças a uma lei de pulverização sindical), a privatização da água, o colapso do sistema de Previdência exclusivamente privada (que rende aposentadorias miseráveis) e os serviços públicos nas mãos das grandes corporações, o que faz com que nada seja gratuito, tornando o custo de vida seja sempre altíssimo especialmente para os mais pobres.

Toda uma série de problemas que fazem parte da vida dos chilenos há décadas, desde que foi instalado, a ferro e fogo, o modelo econômico neoliberal do ditador Augusto Pinochet nos anos 80.

Naqueles mesmos anos 80 em que Paulo Guedes era professor da Faculdade de Economia da Universidade do Chile.

O Chile de Pinochet foi a escola perfeita para Guedes, que não só se transformou em um neoliberal ortodoxo como também entendeu que, por mais que acredite nesse sistema, ele só pode ser implementado através de um governo violento e autoritário, que não economizará em violência contra a insatisfação popular.

As dezenas de milhares de vítimas do regime pinochetista produziram no país o medo necessário para que toda uma geração de chilenos sequer sonhasse em questionar o modelo econômico dos sonhos da direita e do grande capitail.

Com essa premissa, Paulo Guedes e Jair Bolsonaro passaram a campanha de 2018 alardeando uma suposta utopia neoliberal que eles pretendiam reproduzir no Brasil.

E estão cumprindo.

A reforma da Previdência de Guedes visa abandonar o sistema de repartição administrado pelo Estado, vigente na maioria dos países, para adotar o de capitalização individual gerido exclusivamente por grandes bancos e empresas financeiras.

Uma ideia que já fracassou não só no Chile como também na Argentina (foi reestatizado por Cristina Kirchner, em 2009) e muitos outros países.

O sucateamento da educação universitária a partir do projeto Future-se é a porta de entrada para a privatização das universidades públicas.

O Sistema Único de Saúde (SUS) já vem sendo boicotado desde o governo de Michel Temer, também obedecendo aos interesses privados.

A Secretaria de Desestatização criada por Bolsonaro e à mercê de Guedes é outro mecanismo pelo qual se acelera o processo de pinochetização do Brasil, que como aconteceu no Chile, também é respaldado por um governo autoritário e repressivo, que atenta contra o povo e contra o país como um todo, como vemos nos massacres às favelas do Rio, aos recursos da Amazônia ou às praias do Nordeste.

A diferença é que, no caso brasileiro, essa violência toda foi ungida pelas urnas (mesmo que através de um processo mais que questionável).

Esse modelo que o Brasil está vendo nascer, e sabe-se lá por quanto tempo mais terá que lidar até que o povo consiga se rebelar para derrubá-lo, é o que está sendo questionado no Chile hoje.

A necessidade do uso da violência para manutenção desse status quo também é verificada novamente com o atual presidente, Sebastián Piñera, decretando Estado de exceção, colocando os militares nas ruas e impondo já três dias seguidos de toque de recolher.

No domingo (20/10), em declaração à imprensa, Piñera justificou as medidas repressivas dizendo que “estamos em uma guerra contra um inimigo poderoso”.

Esse inimigo poderoso é uma nova geração de chilenas e chilenos, mais jovem que aquela marcada pelo medo da violência pinochetista, e que resolveu sair às ruas para dizer que não aguenta mais o neoliberalismo.

Não é à toa que outros dos slogans dos manifestantes é “aqui começou e aqui deve começar a cair”, em referência ao fato de que o Chile foi o primeiro país no mundo a adotar o sistema econômico neoliberal.

Não é só pelos 30 pesos da passagem, e também não é só por todos os flagelos do neoliberalismo recordados acima.

Desde que Piñera acionou os militares – que estão sendo comandados por um general que é filho de um dos agentes de Pinochet, e que está preso por violações aos direitos humanos –, essa luta também passou a ser pela defesa da democracia, e há cada vez mais gente na rua disposta a resistir, com panelaços e desobediência civil, desafiando o toque de recolher e questionando a prioridade que o governo Chile dá à defesa do lucro privado na hora de tomar decisões.

Nesta segunda-feira (21/10), um jovem político chamado Jorge Sharp, que é prefeito da cidade de Valparaiso (terceira maior do país) e um dos líderes da também jovem Frente Ampla de esquerda, desafiou o presidente Piñera, dizendo que “minha cidade não está em guerra com ninguém”, e aproveitou para fazer um adendo ao slogan das manifestações: “não é pelos 30 pesos, é pelos 30 anos”.

Nesse cenário, é difícil imaginar que conservadores e neoliberais possam se beneficiar politicamente desses acontecimentos, como aconteceu no Brasil de 2013. O povo chileno está revivendo parte do que foi o horror pinochetista, e as consequências eleitorais disso deveriam ser catastróficas para o governo atual e para a direita como um todo.

Mas claro que essa análise se baseia em uma hipótese de que a agenda democrática se mantenha apesar de tudo o que está acontecendo agora.

Se este cenário atual se prolonga, sabe-se lá por quanto tempo, pode não haver mais democracia, ou ela poderia ser cerceada pelas armas durante os próximos processos eleitorais (em 2020 estão programadas eleições municipais, e em 2021 haveria presidenciais e legislativas).

Ou seja, esse Chile que, junto com seus parceiros do Grupo de Lima (como o Brasil de Jair Bolsonaro), vive de denunciar Nicolás Maduro por seus supostos “atentados à democracia”, se tornaria efetivamente o “regime” que acusam existir na Venezuela.

Bolsonaro e Piñera, presidente do Chile