O que aconteceria com Eduardo Cunha se ele fosse deputado na Suécia? Por Claudia Wallin

Atualizado em 27 de novembro de 2015 às 13:21
Na Suécia não há imunidade parlamentar nem foro privilegiado
Na Suécia não há imunidade parlamentar nem foro privilegiado

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Por Claudia Wallin, de Estocolmo

As trevas que escurecem os céus às três e meia da tarde, neste nebulento outono sueco, são um convite a conversas e especulações tenebrosas. Lanço a pergunta aos meus convivas: e se o impoluto Presidente do Parlamento sueco, num delírio lancinante, abrisse quatro contas secretas na Suíça, mentisse para os nobres colegas da Câmara e se tornasse personagem de uma investigação das autoridades suíças sobre corrupção passiva e lavagem de dinheiro?

“Eu seria a primeira cidadã a entrar com uma ação judicial contra ele”, responde a nossa anfitriã da tarde, que durante seis anos foi a porta-voz do primeiro-ministro sueco. À volta da mesa, os demais comensais, incluindo um ex-deputado, balançam a cabeça em sinal afirmativo.

Sim: na Suécia, qualquer cidadão tem o direito de se dirigir à polícia, ou à Procuradoria Geral de Justiça, e apresentar uma denúncia criminal contra qualquer político.

“E pela lei, tanto a polícia como os promotores têm a obrigação de investigar uma denúncia pública, que poderá se converter assim em uma ação penal”, diz na roda da conversa um dos sócios do Mannheimer Swartling, o maior escritório de advocacia da região nórdica.

Nenhum político sueco tem direito a imunidade parlamentar, que na lógica sueca nada mais é do que um salvo-conduto para roubar, desviar e achacar. Políticos suecos também não têm direito a foro privilegiado – nem mesmo o Presidente do Parlamento sueco, que é o mais alto cargo político do país: na hierarquia do poder, ele está acima do primeiro-ministro, e abaixo apenas do rei, que tem a protocolar função de Chefe de Estado.

Vou em busca de informações junto ao Procurador-Chefe do Särskilda Åklagarkammaren, o órgão especial da Procuradoria Geral da Suécia que investiga denúncias contra políticos, policiais, magistrados, promotores e juízes da Suprema Corte.

“Suspeita de corrupção contra um presidente do Parlamento sueco? Nunca ouvi falar nisso. Preciso verificar os procedimentos. Volte a ligar amanhã”, diz o Procurador-Chefe, Mats Åhlund.

Enquanto isso, decido ir ao encontro de um deputado do Parlamento sueco com a pergunta: quanto tempo o presidente do Parlamento sueco permaneceria no exercício de suas funções, caso estivesse sob uma investigação criminal?

“Aqui na Suécia, os políticos têm que se afastar de suas funções até quando são flagrados numa blitz por beber e dirigir”, diz o deputado Kent Härstedt. “Porque um sistema político deve ser extremamente exigente com aqueles que violam a lei. Mesmo quando não se trata de um crime grave”.

Via de regra, um político sueco acusado ou suspeito de algum ato impróprio sempre se afastará temporariamente do cargo. É o que se chama informalmente, nos círculos políticos suecos, de fazer um “time-out”.

“Caso as acusações se provem infundadas, o presidente do Parlamento ou qualquer outro político suspeito poderá, aí sim, retomar suas funções”, prossegue Härstedt.

“Mas enquanto estiver sob suspeita, um político sueco se afastará de suas funções, e por iniciativa própria, a fim de evitar constrangimentos ao seu partido. Ninguém precisaria exigir ou pedir a ele, ´você deve sair´”, pontua o deputado.

Como quem recita o trecho de um romance policial no melhor estilo Stockholm noir, passo a narrar ao deputado sueco os palpitantes acontecimentos envolvendo o presidente do Congresso brasileiro.

“‘Oh my God!’ (´Oh meu Deus!’)”, exclama o deputado, ao ouvir as acusações feitas pelo Ministério Público da Suíça contra Eduardo Cunha.

“O presidente do Congresso nega todas as acusações”, ressalto. “Mas há evidências de que o deputado usou o nome da própria mãe, como contrassenha a ser usada em consultas ao banco suíço”, prossigo.

“‘Oh my God!’”, repete Kent Härstedt, deixando escapar risos nervosos.

Conto a ele, então, que o presidente do Congresso brasileiro nunca declarou a existência das contas às autoridades brasileiras, e que chegou a afirmar, diante de uma CPI do Congresso, que não possuía contas no exterior. Ele tenta se defender agora argumentando que não se trata de contas, e sim de trustes, e que ele é apenas “usufrutuário em vida” do dinheiro.

“‘Jesus!’”, exalta-se mais uma vez o deputado sueco.

Digo a ele que Jesus, na verdade, é o nome da empresa do evangélico deputado, a Jesus.com, em nome da qual Cunha e a mulher têm uma frota de carros de luxo avaliada em R$ 642 mil. E que, apesar de todas as evidências apresentadas e da seriedade das acusações que pesam contra ele, o presidente do Congresso brasileiro se recusa a afastar-se do cargo.

“Uma situação como essa só pode ocorrer em um país que ainda tem instituições frágeis”, diz Kent Härstedt, formulando, enfim, uma frase.

“Em sociedades onde há instituições fortes e independentes, uma imprensa livre e um Judiciário limpo, ninguém está acima da lei. Outro pilar determinante de uma sociedade justa é o grau de escolaridade de uma população, que estabelece sua capacidade de compreender o que ocorre nos poderes do país”, acrescenta o deputado sueco.

Volto a ligar para o Procurador-Chefe Mats Åhlund, que já se inteirou sobre os procedimentos na Suécia para o caso hipotético de uma denúncia criminal contra o presidente do Parlamento sueco: sim, o político poderia ser denunciado por qualquer cidadão, ser processado como qualquer cidadão – e ser julgado, como qualquer cidadão, por um juiz de primeira instância.

“Os cidadãos são livres para vir até mim, ou à polícia, e fazer uma denúncia contra o presidente do Parlamento sueco”, confirma Åhlund.

“A denúncia também pode partir diretamente dos serviços de inteligência da polícia, ou ser deflagrada por minha própria iniciativa, sem qualquer interferência do poder político”, ele acrescenta.

Dependendo da natureza das acusações, o caso pode ser investigado também – de forma individual ou conjunta – pelos promotores da Agência Nacional Anti-Corrupção da Suécia (Riksenheten mot Korruption) ou pela temida Ekobrottsmyndigheten, a Autoridade Sueca contra Crimes Financeiros.

“O que vale para o Presidente do Parlamento, assim como para todos os políticos, são os procedimentos judiciais de praxe, válidos para qualquer cidadão. Não há foro especial”, sublinha o procurador-chefe sueco.

A partir do recebimento de uma eventual denúncia de um cidadão contra o presidente do Parlamento sueco, seria feita uma investigação preliminar sobre o caso.

“Se as acusações mostrassem ter fundamento, meu próximo passo seria conduzir uma investigação mais abrangente. Estas investigações seriam realizadas, sob a minha condução, por uma unidade especial da polícia que trabalha com nossa força-tarefa”, explica o Procurador-Chefe da Särskilda Åklagarkammaren.

E se o Procurador-Chefe entrasse em um estado patológico semelhante à Síndrome de Estocolmo, desenvolvendo um sentimento súbito de simpatia pelo político acusado, e decidisse arquivar o caso?

Para esse tipo de eventualidade, o cidadão que deflagra um processo contra um político pode recorrer da decisão do procurador junto aos cães de guarda do sistema judiciário sueco: o Ombudsman da Justiça (JO, na sigla em sueco) e o Provedor de Justiça (JK). São as duas ouvidorias inventadas pelos suecos entre os séculos XVIII e XIX para – horror, horror – ouvir o povo.

Da mesma forma, a eventual absolvição do presidente do Parlamento sueco em um hipotético julgamento, por um juiz de primeira instância, também poderia ser contestada nas instâncias superiores da Justiça pelo cidadão responsável pela denúncia criminal.

Sobre os termos de uma eventual punição de um presidente do Parlamento por corrupção passiva e evasão de divisas, o procurador sueco adota a cautela.

“Não faço especulações”, rechaça ele.

A lei sueca prevê pena de dois a seis anos de prisão para crimes de corrupção. Para contas bancárias não declaradas – o que na Suécia é considerado um crime severo -, a punição varia de seis meses a seis anos no xadrez.

Pergunto a Mats Åhlund se o presidente do Parlamento poderia permanecer no cargo, durante as investigações.

“Esta decisão caberia ao Parlamento”, diz o Procurador-Chefe. “Normalmente, os próprios políticos tomam voluntariamente a decisão de se afastar. Mas nunca passamos por tal situação com um presidente do Parlamento, então não há precedentes.”

O procurador recusou-se, elegantemente, a comentar o caso Eduardo Cunha.

Mas na animada roda de conversa dos meus convivas, naquela tarde escura de outono, travara-se um diálogo sueco em torno da novela policial que se desenrola no Congresso brasileiro:

“Parece que no Brasil os políticos têm imunidade parlamentar”, comentou o ex-deputado ao redor da mesa.

“Imunidade parlamentar? Isso é um absurdo incompreensível”, reagiu o marido da anfitriã entre goles de glögg, o tradicional vinho quente com especiarias que é apreciado nesta época do ano.

“Se o próprio Congresso não exige a renúncia do presidente da Câmara, então todo o sistema está podre”, decretou a ex-porta-voz do primeiro-ministro sueco.