
Por Lenio Streck, publicado no Conjur
O objetivo desta coluna é traçar um panorama descritivo acerca do que dizem os principais juristas dos EUA sobre o que ocorre no território americano. A amplitude e diversidade das críticas de juristas norte-americanos ao ex-presidente Donald Trump ganharam destaque numa análise conduzida pelo The New York Times. E nele baseio este texto.
Em um esforço por privilegiar a técnica acima da ideologia, foram ouvidos 35 estudiosos de variados espectros ideológicos, entre os quais liberais como Erwin Chemerinsky (UC Berkeley) e Jody Freeman (Harvard), conservadores como Adrian Vermeule (Harvard) e Michael McConnell (ex-juiz de apelações e diretor do Constitutional Law Center de Stanford), e liberais como Ilya Somin (George Mason University) e Evan Bernick (Northern Illinois University).
Todos esses juristas são frequentemente citados em artigos acadêmicos por seus pares e reconhecidos por seus trabalhos e por sua participação em discussões públicas. A partir de seus depoimentos, o NYT construiu um “mapa da primeira centena de dias de ilegalidade” da administração Trump — abrangendo sua afronta ao Judiciário e ao sistema constitucional, o enfraquecimento das liberdades da Primeira Emenda, o ataque a escritórios de advocacia, universidades e imprensa, a retenção indevida de verbas federais autorizadas pelo Congresso, a erosão de direitos de imigrantes e a busca por concentração de poder. O que emerge dessa construção não são meros exemplos isolados de conduta inconstitucional, mas um padrão consolidado de desrespeito às liberdades civis, ao pluralismo político, à separação de poderes e aos constrangimentos legais — marca típica de um regime autoritário, nas palavras do professor David Pozen, da Columbia Law School. Essa premissa inicial estabelece o tom para a análise das críticas dos teóricos do direito e seu impacto sobre a compreensão contemporânea da democracia americana.
Os juristas consultados
Dos 35 consultados apenas Adrian Vermeule se coloca a favor de Trump na maioria das questões. Vermeule, aliás, que foi objeto de texto meu de 2020 onde mostrei que ele vinha promovendo uma espécie de Constitucionalismo Deus acima de todos. Não é à toa que seja, do conjunto referido, o único grande apoiador de Trump. Mesmo assim, o próprio Vermeule em artigo junto com Cass Sunstein fez fortes críticas a Trump e a Steven Bannon.
A amplitude das críticas dos outros 34 especialistas, no entanto, não se limitam a constatar ilegalidades pontuais, mas, sim, a diagnosticar um projeto político mais ambicioso: a tentativa de reconfigurar o regime constitucional norte-americano a partir de uma lógica de concentração de poder no Executivo, com desprezo pelas normas jurídicas e pelas instituições de controle.
O professor Ilya Somin, da Antonin Scalia Law School (George Mason University), alerta que, se plenamente realizado, esse projeto resultaria em algo próximo a uma “monarquia eletiva” ou a um “Estado quase autoritário”, com graves implicações para o Estado de Direito e os valores democráticos liberais.
A professora Jody Freeman, da Harvard Law School, é ainda mais direta: para ela, o desprezo à legalidade não é um efeito colateral, mas parte intrínseca do programa trumpista — uma postura deliberadamente “imprudente”, que opera sem considerar se está ou não violando a Constituição, cometendo erros ou produzindo danos irreparáveis.
Esse cenário é agravado por ataques sistemáticos a pilares do Estado democrático, como o devido processo legal, a liberdade de expressão e a autonomia das instituições.
A tentativa de suprimir o direito à cidadania por nascimento, por exemplo, foi apontada pelos juristas entrevistados como uma das mais flagrantes transgressões constitucionais da era Trump. A medida foi classificada por Evan Bernick, professor da Northern Illinois University, como “inconstitucional” — um esforço para apagar conquistas históricas de liberdade e transformar a Constituição em um instrumento de dominação.
Já Kermit Roosevelt (University of Pennsylvania) destacou que tal ataque representa uma ameaça ao princípio fundamental de que não deve haver uma subclasse hereditária nos Estados Unidos. E Michael McConnell (Stanford), apesar de conservador e membro da Federalist Society, demonstrou confiança de que os tribunais rejeitariam a tese presidencial, reconhecendo o direito à cidadania aos filhos de imigrantes nascidos em solo americano.
A ofensiva se estendeu também ao campo das garantias processuais. Casos como o de Abrego Garcia, deportado sob a justificativa de uma lei de 1798 raramente aplicada, ilustram a erosão das garantias mais básicas do due process of law. Segundo vários juristas, a administração Trump recorreu a dispositivos vagos e ambíguos — como a acusação de ameaça à política externa — para deportar estudantes internacionais e revogar milhares de vistos, frequentemente sem justificativa ou possibilidade de recurso. Para a professora Amanda Frost (University of Virginia), esse tipo de atuação coloca em risco não apenas os não cidadãos, mas também os próprios cidadãos norte-americanos, ao criar precedentes de atuação executiva sem controle judicial. Ingrid Eagly (UCLA) alerta que o governo está construindo um sistema de enforcement intocável pelos tribunais, no qual nem mesmo cidadãos natos estariam totalmente seguros. Kim Wehle (University of Baltimore) sintetiza a gravidade do problema: sem devido processo legal — que remonta à Magna Carta — não há democracia, pois a liberdade fica à mercê do arbítrio de um governante mal-intencionado.
Os juristas também denunciam a agressão institucional a escritórios de advocacia, ameaçados com cancelamento de contratos, perda de acesso a prédios federais e revogação de credenciais por representarem clientes ou causas contrárias aos interesses do presidente. Firmas como Jenner & Block alegaram, em juízo, violações à Primeira, Quinta e Sexta Emendas — e foram respaldadas por juízes que classificaram essas ações como “abusos chocantes de poder”. Professores como Barry Friedman (NYU) e Kate Shaw (University of Pennsylvania) afirmaram que poucas ordens presidenciais violam tantas disposições constitucionais simultaneamente, comparando o padrão de coerção a práticas extorsivas. Martin H. Redish (Northwestern) foi taxativo: “Seria difícil imaginar uma ação presidencial mais corrosiva para os fundamentos da democracia constitucional”.
A reportagem do New York Times inclui o modo como as universidades também entraram na linha de fogo. O governo condicionou repasses bilionários a mudanças em políticas de contratação, admissão e currículo — um ataque à autonomia acadêmica e à liberdade de pensamento. Nicholas Stephanopoulos (Harvard) lembrou que punir instituições por suas posições políticas fere o princípio central da Primeira Emenda: o de que o governo não pode retaliar indivíduos ou entidades por sua expressão ideológica. Para Derek Black (University of South Carolina), a verdadeira questão é se ainda se pode expressar ideias contrárias ao governo sem sofrer sanções. A resposta, segundo ele, parece ser cada vez mais negativa.
A análise desses especialistas, embora diversa em enfoques, converge para um diagnóstico comum: o governo Trump não operou meramente nos limites do controverso, mas sim no território do ilegal e, em muitos casos, do inconstitucional. Como sintetizou a professora Dawn Johnsen (Indiana University), a eficácia da Constituição depende de que os atores políticos — especialmente os que detêm poder — ajam com boa-fé e respeito às normas. Quando isso falha, cabe aos demais atores institucionais exigir fidelidade à ordem constitucional, sob pena de se perder o próprio espírito da democracia. Nesse sentido, o que está em jogo, mais do que a sorte de uma administração específica, é a sobrevivência dos valores fundamentais do constitucionalismo norte-americano.

Opiniões de outros especialistas
Steven Levitsky, cientista político de Harvard e coautor de How Democracies Die, é um crítico contundente de Donald Trump. Recentemente disse que as instituições brasileiras resistiram muito melhor a Bolsonaro do que as americanas a Trump.
Ele vê as ações de Trump como uma ameaça significativa à democracia americana. Para Levitsky, Trump exibe traços autoritários — desrespeito às normas democráticas, ataques a instituições independentes (como o Judiciário e a imprensa) e polarização política extrema. Destaca episódios como a contestação dos resultados das eleições de 2020 e o incentivo à insurreição de 6 de janeiro de 2021 como exemplares de comportamento antidemocrático. Levitsky vê as ações recentes de Trump, como tentativas de deportações em massa ou decretos controversos, como parte de uma trajetória de erosão democrática. Ele também expressa preocupação com a concentração de poder no Executivo, especialmente associada a decisões da Suprema Corte que ampliam a imunidade presidencial. Levitsky alerta que Trump testa os limites dos “checks and balances” do sistema americano, aproximando os EUA de uma “democracia iliberal”.
Cass Sunstein, também de Harvard, é jurista liberal com contribuições em direito administrativo e economia comportamental. Ele critica ações de Trump que desafiam as normas democráticas e o Estado de Direito. Sunstein, assim como o conservador Vermeule, valoriza a moralidade jurídica de Fuller e considera que Trump frequentemente a desrespeita. Sunstein manifestou preocupação com a retórica de Trump contra o Judiciário e suas tentativas de expandir o Poder Executivo, por meio de ordens executivas controversas. Ele provavelmente veria iniciativas como abolir a cidadania por nascimento ou promover deportações em como violações constitucionais e do devido processo legal. Sunstein tende a enfatizar a importância das instituições democráticas estáveis e criticaria Trump por pressionar escritórios de advocacia ou desrespeitar ordens judiciais.
Outro importante jurista é Laurence Tribe, renomado constitucionalista de Harvard. É um dos críticos mais severos de Trump. Ele considera as ações de Trump como ataques diretos à Constituição e ao Estado de Direito. Para o constitucionalista Trump é um “provocador, hipócrita e sem lei”. Tribe se manifestou contra a retórica de Trump contra juízes, o uso de leis arcaicas para justificar deportações e pressões sobre instituições jurídicas. Tribe critica Trump e a Suprema Corte por frequentemente desrespeitarem princípios jurídicos fundamentais. Ele interpreta as ações recentes como desobediência a ordens judiciais e ameaças a juízes como sinais de uma crise constitucional iminente. Tribe é firme ao defender a independência judicial e os direitos fundamentais, como os garantidos pela Primeira e Décima Quarta Emendas e acredita que Trump representa uma forte ameaça a essas conquistas dos americanos.
Reitor da Berkeley Law School, Erwin Chemerinsky, é outro crítico destacado de Trump. Como constitucionalista liberal, enxerga as ações de Trump como ameaça ao sistema de freios e contrapesos e aos direitos constitucionais. Chemerinsky criticou a retórica de Trump contra juízes, como no caso de James Boasberg, e políticas como deportações em massa sem respaldo jurídico. Ele demonstrou preocupação com a decisão da Suprema Corte de conceder ampla imunidade presidencial, argumentando que isso dá a Trump (e futuros presidentes) um “cheque em branco” para abusos de poder. Chemerinsky considera iniciativas como abolir a cidadania por nascimento ou pressionar escritórios de advocacia como inconstitucionais e perigosas. Ele enfatiza o Judiciário como “última linha de defesa” contra abusos executivos, em artigo acadêmico intitulado Trump, a corte e o Direito constitucional o constitucionalista tece fortíssimas críticas a Trump, e acredita que ele represente uma enorme ameaça à democracia americana.
Um aguardado pronunciamento era o de Bruce Ackerman, famoso professor de Direito Constitucional e Ciência Política em Yale, e uma das vozes mais críticas ao segundo mandato de Donald Trump. Ackerman aponta uma série de ações que, segundo ele, comprometem seriamente os fundamentos da democracia americana. Para Ackerman, Trump tem sistematicamente atacado pilares institucionais — como a independência judicial e o processo regulatório previsto pela APA — e tenta consolidar um modelo de poder concentrado e autoritário, desrespeitando normas constitucionais e precedentes históricos. Ele alerta, por exemplo, para o uso indevido de ordens executivas e nomeações sem aprovação do Senado, além da tentativa de interferência em agências independentes e universidades. Ackerman fala veementemente que Trump age a todo momento de maneira absolutamente inconstitucional.
Ackerman também argumenta que Trump deveria ser desqualificado de cargos públicos com base na Seção 3 da 14ª Emenda, por seu papel na insurreição de 6 de janeiro de 2021. Ele criticou duramente a decisão da Suprema Corte dos EUA que concedeu imunidade parcial a Trump, classificando-a como perigosa e sem base jurídica sólida. Mesmo com a reeleição apertada de Trump em 2024, Ackerman sustenta que o apoio popular ao trumpismo permanece frágil, mas teme uma possível tentativa de Trump buscar um terceiro mandato, em clara violação da 22ª Emenda.
Apesar do cenário preocupante, Ackerman vê caminhos para conter a erosão democrática: a resistência institucional nos estados, a pressão do Congresso e a mobilização cívica nas eleições de 2026 e 2028. Ele defende uma reação firme contra a normalização do autoritarismo e convoca juristas, cidadãos e instituições a reafirmarem os compromissos constitucionais dos EUA. Ackerman acredita que Trump é uma ameaça existencial para a democracia e se a suprema corte fosse fiel à constituição o haveria removido da política como o STF fez com Bolsonaro aqui no Brasil.
Numa palavra final, com exceção de Steven Levitsky, quem, aliás, não é da área jurídica, não houve manifestação, até agora, em relação às sanções aplicadas ao Brasil e ao ministro Alexandre de Moraes – por meio da Lei Magnitsky. Talvez porque não tenham sido demandados pelos repórteres brasileiros, que, como se sabe, preocupam-se mais em buscar matéria já feita do que fazer investigações com caráter mais aprofundado – questão que se agrava quando o assunto é jurídico e complexo.
De qualquer maneira, eis aí uma boa pauta para a grande mídia brasileira e norte-americana. O que pensam os grandes juristas dos EUA – tão citados em dissertações, teses e livros no Brasil – sobre esse tema específico? Uma lei como essa tem sentido no âmbito do direito internacional? E pode ser aplicada em desvio de finalidade?
A questão ganha ainda mais relevo quando se constata que o próprio coautor da Lei Magnitsky, o deputado democrata Jim McGovern, já se manifestou de forma contundente sobre o episódio. Em carta enviada ao secretário do Tesouro norte-americano, Scott Bessent, McGovern afirmou que o uso da norma contra o ministro Alexandre de Moraes é “vergonhoso” e totalmente contrário ao espírito da lei. Segundo ele, a intenção da legislação – e aqui está o desvio de finalidade – sempre foi responsabilizar indivíduos que praticam graves violações de direitos humanos ou que estejam envolvidos em esquemas sistemáticos de corrupção, e não interferir em processos democráticos internos de outros países. O que não é o caso do ministro Alexandre de Moraes.
Sabe-se que a Corte Suprema dos EUA pratica um forte self restraint. Portanto, há forte deferência ao executivo e legislativo. Por isso a Corte não vem recebendo recursos decorrentes dos atos de Trump, com raras exceções. Porém, como escrevi aqui na Conjur, existem precedentes na US Supreme Court que tratam do desvio de finalidade. Portanto, não se trata de discutir o conteúdo da Lei Magnitsky, e, sim, a sua aplicação enviesada.
A ver.