
Após 65.062 palestinos mortos, 165.697 feridos, 9.619 sob custódia, 61,8% das moradias destruídas, mais de 1,2 milhão de pessoas sem teto e 95% dos hospitais danificados desde 7 de outubro, Reino Unido, Canadá, França e Portugal farão sua entrada da dignidade na Assembleia Geral da ONU caminhando sobre corpos e escombros para declarar o reconhecimento de um Estado palestino.
A primeira pergunta que cabe diante da vagueza da declaração é: que Estado eles dizem reconhecer, qual território, qual fronteira, qual infraestrutura? A Cisjordânia encontra-se fragmentada em áreas de controle, com aproximadamente 700.000 colonos israelenses estabelecidos no território, onde, somente em 2024, Israel declarou uma expansão de terras estatais maior do que nos 23 anos anteriores somados (2000-2023).
Gaza está completamente devastada, com 57% da infraestrutura de água destruída ou danificada, com a capacidade atual de fornecimento abaixo de 5% da produção normal, com 85% da população de 2,2 milhões deslocada e com Israel controlando a totalidade do espaço aéreo, águas territoriais e fronteiras.
Reino Unido, Canadá, França e Portugal parecem replicar em suas declarações de reconhecimento a estratégia de ambiguidade territorial israelense projetada por Ben-Gurion já na “fundação” de Israel, quando decidiu não ter uma constituição escrita para evitar a delimitação de um território que, desde sua gênese, tinha a expansão colonial como projeto.
O reconhecimento do Estado da Palestina por esses países é intencionalmente vago, intangível e sem significado quanto aos aspectos fundamentais de um Estado: sem território contíguo, sem infraestrutura funcional, sob ocupação militar. Mas, no entanto, é muito claro e prescritivo no que diz respeito ao controle político “soberano” da Palestina.

Diferentemente da vagueza territorial, o reconhecimento pelo Canadá e pela Austrália, em coordenação com o Reino Unido e a França, impõe condições muito específicas e bem definidas sobre a “soberania” palestina. Está escrito de forma clara e impositiva para a população palestina como e por quem seu país deverá ser governado como condição para o reconhecimento.
O Reino Unido exige que, para “reviver a esperança de paz”, o Hamas, que continuará sujeito a sanções e listado como organização terrorista nesse país, não deve participar de governo futuro sob nenhuma hipótese, ainda que represente a vontade popular palestina. Em boa sutileza britânica, por inferência, essa declaração implica que a Autoridade Palestina (AP) terá de assumir o novo governo e será a única alternativa para futuros governos.
Canadá, Austrália e Portugal já preferem ser menos cínicos e indicam expressamente a nova liderança: o país terá de ser “liderado pela Autoridade Palestina”. A França também exige “reformas institucionais palestinas” para uma Autoridade Palestina renovada que possa assumir governança eficaz, inclusive em Gaza.
Mas o que significa ter a Autoridade Palestina como única possibilidade governamental, para além da contradição em termos de condicionar a soberania de um país à imposição de seu governo por países externos?
Para a grande maioria dos palestinos, a AP tornou-se um instrumento de forças externas contra a libertação nacional, agindo como agente colaboracionista, mantendo a ocupação estável em troca de privilégios econômicos e políticos, apresentando-se como parceira moderada, capaz de conter o “extremismo” e aceitar soluções ficcionais.
A AP sabotou, executou lideranças e admite publicamente, como compromisso inquestionável, compartilhar inteligência com Israel, facilitando operações de captura/assassinato de combatentes. A AP também é acusada de autoritarismo crescente, repressão a protestos populares contra a coordenação de segurança e a corrupção, criminalizando e desmobilizando a resistência palestina na Cisjordânia, sendo responsável por prisões arbitrárias de ativistas críticos, inclusive de esquerda e independentes.
A AP é vista internamente como promotora de práticas de neutralização da dissidência e de enfraquecimento da luta nacional, além de aliada histórica da Europa na manutenção do controle colonial dos territórios ocupados da Palestina.
Do ponto de vista geopolítico, essa declaração é urgente e se fazia necessária diante das crescentes pressões da disputa territorial com Trump, que já deixou sua lição na partilha da Ucrânia, alienando ostensivamente os interesses europeus. Trump, que, junto a seu cunhado Jared Kushner, já anunciou seus planos para a Palestina, afirma que a Faixa de Gaza será um grande resort, uma riviera do Oriente, com cassinos, bordéis e todos os fascínios mórbidos de que esse tipo de gente se alimenta.
O primeiro-ministro britânico do Partido Trabalhista, Keir Starmer, na semana passada, durante a visita de Trump ao Reino Unido, recebeu um tapinha condescendente nas costas do americano por demonstrar sua lealdade, criminalizando o Hamas e declarando que “o que aconteceu em 7 de outubro foi o pior ataque desde o Holocausto”. O reconhecimento da Palestina certamente não é uma mudança de posição.
A leitura mais imediata é que essa declaração vem para apaziguar a revolta das bases eleitorais de uma população europeia cada vez mais indignada e bem informada, que tem consistentemente lotado as ruas, condenando a participação direta com armas e inteligência, sobretudo do Reino Unido, no que qualquer pessoa com bom senso reconhece hoje como um holocausto de alta tecnologia do nosso tempo.
Mas, do ponto de vista da estratégia política, trata-se de manter intactas as relações e as estruturas de apoio militar e econômico a Israel, para evitar medidas de efeito real por parte de países que até hoje não impuseram uma única sanção efetiva contra Israel. Esses países mantêm o paradoxo das sanções seletivas com embargos econômicos, comerciais, financeiros e militares contínuos contra as populações de países como Irã, Síria, Rússia, Iraque, Venezuela e Cuba, por “violações de direitos humanos”.
Enquanto isso, as vendas de armas israelenses atingiram um recorde de US$ 14,7 bilhões em 2024, com mais da metade dos acordos realizados com países europeus.
A Europa precisa se posicionar como perpétua colonizadora do território.
Assim falou Lampedusa, no romance “O Leopardo”: “Se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude.”