O que Montaigne pensaria do ENEM

Quem está debochando de quem? Os garotos que incluíram receitas e hinos nas redações ou os educadores que fizeram vista grossa? Escolha.

Caro leitor, na hipótese de eu me desviar um pouco do assunto em meu texto para retomá-lo logo em seguida, queira por favor considerar apenas os 80% que fazem algum sentido. Entendeu ou quer que eu desenhe? O leitor deste DCM deve ser alguém muito limitado intelectualmente para exigir que um texto tenha início, meio e fim com coerência, cruz credo.

Então agora, para não ficar muito cansativo, vou passar uma maravilhosa receita de miolo. É miolo mesmo, não foi erro de ortografia não revisado. Miolo, afinal receita de miojo já está muito batida.

Para se obter um bom miolo é preciso pensar. Pensar é algo que pode sim ser aprendido e a escola (e seus professores) têm que ter essa receita. Seguir a cartilha que prega que B + A = BA é excelente porém se não for além disso o miolo não irá crescer.

Portanto, vamos falar sério. As famosas redações do ENEM divulgadas nos últimos dias eram dignas de nota, sim. Nota zero. Meu filho caçula que ainda está no ensino fundamental faria melhor.

Esqueça por um momento a história do miojo e do hino do Palmeiras. Pegue as redações e leia o restante, cujo tema era imigração. Parece ter a profundidade de raciocínio de uma criança de 9 anos.

O que é isso senão um retrato fiel da falência do ensino brasileiro?

A última edição do exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) teve um índice de aprovação de 10,3%. Prefiro ver de outra forma: 89,7% não obtiveram a nota mínima. Para o presidente da Comissão Nacional do exame da OAB, Leonardo Avelino, “Muitos que prestam o exame não são capazes nem de interpretar com profundidade um texto. Essa é uma lacuna deixada pelo ensino médio”. Ou seja, em provas onde não é possível ficar enchendo linguiça com miojo, ninguém passa.

O que é isso senão o reflexo da baixa qualidade da base?

Esse empobrecimento cultural é alarmante. País nenhum vai para frente dessa maneira. As classes C e D agora conseguem comprar geladeira, ótimo, mas as classes A,  B,  C,  D e  F ainda não sabem ler. Não há geladeira nova que compense isso.

E se a base é deficiente, quem é responsável? Professores ganham mal? Muito mal, péssimamente mal. Isso é desculpa?

Eu não deveria nem citar a questão salário aqui porque isso por si só já demandaria umas 34 colunas a respeito, mas o que explicaria que redações compostas com pérolas como “rasoavel”, “enchergar” e “trousse” recebessem nota mil (é 1.000 mesmo) senão a total displicência dos corretores? O intuito dessas pessoas só pode ser o de perpetuar a ignorância, não consigo entender de outra maneira.

Essa tolerância, essa passada de mão na cabeça do pobrezinho é criminosa. E covarde. Segue a linha: “Bem, como eu não ensinei, ele não aprendeu. Não posso reprová-lo”.

Não dá para ler aquelas inserções bizarras com macarrão instantâneo e hino de clube (intencionalmente, sei disso, a intenção dos estudantes era exatamente provar que ninguém com um mínimo de seriedade corrige as redações) e permanecer indiferente.

A receita de Miojo no meio da redação

Fica evidente que nada está sendo levado a sério quando, em vez de admitir as falhas, as autoridades de ensino nos apresentam justificativas como “não fugiu ao tema, nem feriu direitos humanos nem usou palavras ofensivas”. Ou ainda a brilhante reação do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pelo Enem, em sugerir que a partir da próxima edição da prova esse tipo de “deboche” deve receber nota zero. Quem está debochando de quem? Os garotos que provaram a ineficiência do exame ou os “educadores” que fizeram vista grossa para o que viram, numa atitude irresponsável e cúmplice?

Montaigne que, como pai da receita de miolo descrita acima não se surpreenderia com nosso estágio atual, poderia dar uma enorme ajuda a nossos professores, caso estes se dispusessem a ler seus Ensaios, onde discorre sobre como extrair frutos do ensino: “Que ele não lhe peça contas somente das palavras de sua lição mas do sentido e da substância. E que julgue o proveito que a criança terá tirado, não pelo testemunho de sua memória mas pelo de sua vida. Que a faça mostrar com cem feições diferentes o que tiver acabado de aprender, adaptando-o a outros diversos assuntos para ver se aprendeu realmente e assimilou. Regurgitar a comida tal como a engolimos é sinal de sua crueza e de indigestão: o estômago não fez seu trabalho se não mudou o estado e a forma do que lhe foi dado a digerir.”

Enfim, leitor, esqueça a escola, já está claro que, cada vez mais, ela abandona uma função educadora e se ocupa de reproduzir conteúdos de maneira autômata. Ensine seu filho a pensar por ele mesmo. Talvez em breve alguém se ofenda com as opiniões dele, mas isso é ótimo para o mundo não ficar tão cansativo quanto uma receita de miojo.

Mauro Donato

Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo.

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