O que Moro tem contra Lula são pedaladas jurídicas e pedalinhos processuais. Por Felipe Pena

Atualizado em 3 de maio de 2017 às 17:12

Não se trata de defender ou atacar o ex-presidente. O que está em jogo nos processos contra Lula é o próprio estado democrático de direito, vilipendiado em seu princípio mais elementar, o de que todos são inocentes até que se prove o contrário.

Se tal princípio for desrespeitado – sobretudo a partir de uma falsa legitimação viabilizada pela instrumentalização da mídia – todos nós estaremos em perigo no Brasil. Qualquer juiz ou promotor se achará no direito de acusar e condenar com base apenas em convicções, sem provas. Viveremos, se é que já não estamos vivendo, em um estado totalitário, com viés de barbárie e perseguição.

O juiz Sergio Moro, por exemplo, já demonstrou que não tem apreço pelos trâmites legais em pelo menos duas ocasiões: quando divulgou as gravações ilegais da presidente Dilma (desrespeito ao art. 8º da Lei 9.296/96) e quando determinou a condução coercitiva do jornalista Eduardo Guimarães, exigindo que ele revelasse suas fontes (desrespeito ao art. 5º, inciso XIV da Constituição). Portanto, não será novidade se fizer o mesmo ao condenar Lula sem a obtenção de provas.

Por isso, cabe aos magistrados responsáveis deste país – aqueles que não são midiáticos e que falam apenas nos autos – proteger a constituição e o respeito ao devido processo legal. Em outras palavras, os magistrados superiores precisam ter a coragem de dizer ao juiz Moro que ele não está acima das leis e que não é o super-herói construído pela mídia.

Só para exemplificar, vamos ao caso do tríplex, cuja propriedade é atribuída a Lula.

Alguém pode, de fato, afirmar que existem provas dessa propriedade? Ou a base mais forte da acusação é o depoimento de Leo Pinheiro, dono da construtora OAS, que afirma que o apartamento é do ex-presidente (apesar de não estar no nome dele)?

Vamos lembrar que Leo Pinheiro teve um acordo de delação premiada cancelado no ano passado. Em tal acordo, não mencionava Lula. Mas agora, quando tenta uma nova delação, descarrega o nome do ex-presidente com toda a força. E ainda afirma que, a mando dele, destruiu as provas que tinha. Muito conveniente, não é mesmo?

Sua palavra é, no mínimo, duvidável. E, ainda que Leo Pinheiro tivesse credibilidade, está muito clara a pressão que vem sofrendo por parte dos procuradores. (Sugiro que vejam o vídeo do grupo “Porta dos Fundos” sobre as delações premiadas. Este caso se encaixa perfeitamente)

Outro aspecto estranho do caso é o adiamento do depoimento de Lula em uma semana. Moro alegou que atendeu a um pedido da polícia federal, cujo efetivo não seria suficiente para dar segurança ao “evento”. Entretanto, ele aproveitou o adiamento para reconvocar o réu/testemunha Paulo Duque, já condenado pelo juiz. Novamente, podemos supor que uma mudança do depoimento de tal testemunha pode estar associada a pressões para uma possível redução de pena, mesmo que nenhuma prova seja apresentada.

O que pode e deve acontecer é a transformação do novo depoimento em um espetáculo midiático às vésperas do encontro de Moro com Lula. Mais uma vez, o juiz usará a estratégia da “midiatização instrumental”, conceito criado pelo jurista Juarez Guimarães, da UFMG, para se referir a magistrados que quebram o princípio da imparcialidade do juiz a partir do vazamento seletivo e sistemático de depoimentos.

Esta é a pedalada jurídica mais utilizada por Moro. E ele não esconde seu entusiasmo pela estratégia, já que a defendeu em artigo sobre a “Operação Mãos Limpas”, publicado em 2004 na Revista do Centro de Estudos Jurídicos de Brasília (n.26, pp. 56 a 62): “o constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva” – escreveu Moro. E completou: “Craxi (líder político italiano), especialmente, não estava acostumado a ficar na posição humilhante de responder a acusações”.

A tentativa de humilhação pública é, portanto, o pedalinho processual de Sergio Moro. Para humilhar, não precisa de provas. Bastam as acusações, o circo e a condução coercitiva da cognição do público.

Por último, deixo registradas as cinco perguntas que viralizaram nas redes sociais nos últimos dias. Respondam com sinceridade a cada uma delas e pensem sobre este processo.

1) Se Marcelo Odebrecht diz “não posso provar” e Leo Pinheiro diz “destruí as provas”, existem provas contra o Lula?

2) Se eu juntar dois recibos de pedágios indo pro litoral de São Paulo, posso afirmar que sou dono de um tríplex no Guarujá?

3) Quem consegue colocar 13 milhões “em espécie” dentro de uma pasta também consegue colocar 5 elefantes dentro de um fusca?

4) Por que Leo Pinheiro destruiu provas contra o Lula e não destruiu provas contra ele mesmo?

5) Por que a OAS deu 500 milhões pro Cabral, 200 milhões pro Cunha, 50 milhões pro Aécio, 45 milhões pro Temer – tudo com provas documentais – e pro Lula só deu a reforma de um tríplex (sem provas)?

Quando se trata de processo penal, nós ultrapassamos todos os significados da expressão kafkaniano.

Aliás, Kafka teria um cenário muito melhor para seu livro se vivesse no Brasil temerário de 2017.

E ainda poderia passear de pedalinho nos Grandes Lagos de Atibaia.

Felipe Pena é jornalista, escritor e psicanalista. Doutor em literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado pela Sorbonne III, foi visiting scholar da NYU e é autor de 15 livros, entre eles o ensaio “No jornalismo não há fibrose”, finalista do prêmio Jabuti.