O que Noam Chomsky viu em sua primeira visita a Gaza

Atualizado em 12 de abril de 2013 às 10:49

Em meio às violências cotidianas, os palestinos são um exemplo inspirador de demanda por dignidade.

Criança de Gaza
Criança de Gaza

O artigo abaixo, do grande pensador e ativista Noam Chomsky, foi publicado no site In The Times.

O romancista sueco Henning Mankell fala de uma experiência em Moçambique durante os horrores da guerra civil, há 25 anos. Ele viu um jovem andando em roupas esfarrapadas em direção a ele. “Notei algo que nunca vou esquecer enquanto viver”,  diz Mankell. “Olhei para seus pés. Ele não tinha sapatos. Em vez disso ele tinha pintado sapatos em seus pés. Ele tinha usado as cores da terra e das raízes para substituir seus sapatos. Era  uma maneira de manter sua dignidade. ”

Tais cenas evocarão memórias pungentes entre aqueles que testemunharam a crueldade e a degradação por toda parte. Um caso marcante, para mim, é Gaza, que visitei pela primeira vez em outubro passado. Lá a violência encontra a resistência constante dos samidins – os que suportam, para usar o termo clássico de Raja Shehadeh em seu livro de memórias sobre os palestinos sob ocupação,  escrito há 30 anos.

No meu retorno para casa soube do ataque israelense em Gaza em novembro, apoiado pelos Estados Unidos e tolerado educadamente pela Europa, como de costume.

Gaza não sofre apenas com Israel. O sul de Gaza permanece em grande parte sob o controle da polícia secreta temida do Egito, a Mukhabarat,  que relatos críveis vinculam à CIA e ao Mossad israelense. No mês passado, um jovem jornalista de Gaza  me enviou um artigo descrevendo o último ataque do governo egípcio sobre o povo de Gaza.

Uma rede de túneis para o Egito é uma tábua de salvação para os moradores de Gaza sob cerco e ataque constantes. Agora, o governo egípcio desenvolveu uma nova forma para bloquear os túneis: inundando-os com esgoto.

Enquanto isso, o grupo israelense de direitos humanos B’Tselem informa sobre um novo dispositivo que o exército de Israel está usando para combater os protestos semanais não violentos contra o ilegal muro de separação de Israel  – na realidade, um muro de anexação.

Os samidins se mostraram engenhosos em lidar com bombas de gás lacrimogêneo, e então o exército israelense  decidiu atirar contra os manifestantes jatos de um líquido tão nocivo como esgoto. Estes ataques combinam repressão criminosa com humilhação.

A tragédia de Gaza remonta a 1948, quando centenas de milhares de palestinos fugiram aterrorizados ou foram expulsos pelas forças israelenses. O primeiro-ministro David Ben-Gurion declarou que “os árabes da Terra de Israel têm apenas uma coisa a fazer:  fugir.”

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É digno de nota que hoje o mais forte apoio a Israel na arena internacional venha dos Estados Unidos,  do Canadá e da Austrália, a chamada Anglosfera colonial – sociedades baseadas no extermínio ou a expulsão das populações indígenas em nome de uma raça superior, e nas quais este comportamento é considerado  louvável.

Por décadas Gaza tem sido uma vitrine para violências de todo tipo. O registro inclui atrocidades cuidadosamente planejadas, como a Operação Cast Lead em 2008-2009  — “infanticídio”, como foi chamada pelos médicos noruegueses Mads Gilbert e Erik Fosse, que trabalharam no Hospital de Gaza al-Shifa durante o ataque criminoso. A palavra é apropriada, considerando as centenas de crianças massacradas.

Em Gaza, as pessoas mais velhas ainda podem olhar através da fronteira para as casas de onde foram tiradas  – mas se cruzarem a fronteira e se aproximarem delas serão mortas.

Se é uma vitrine para a capacidade humana para a violência, Gaza também é um exemplo inspirador de demanda por dignidade.

Ghada Ageel, uma jovem que escapou de Gaza para o Canadá,  escreve sobre sua avó de  de 87 anos de idade, ainda na prisão de Gaza. Antes de expulsão de sua avó de uma aldeia agora destruída,  “ela possuía uma casa e terras,  e tinha honra, dignidade e esperança”. Surpreendentemente, a venha senhora não perdeu a esperança.

“Quando  vi minha avó em novembro de 2012, ela estava extraordinariamente feliz”, diz Ageel. “Pedi uma explicação. Ela me olhou nos olhos e, para minha surpresa, disse que ela não estava mais preocupada com a sua aldeia natal e a vida digna que perdeu em caráter irrevogável. A vila, a avó disse a Ageel, “está em meu coração, e eu também sei que você não está sozinha em sua jornada. Não desanime. Estamos chegando lá. ”

Também as prisões israelenses estão uma vez mais sob escrutínio. Em fevereiro, Arafat Jaradat, de 30 anos, funcionário de um posto de gasolina, morreu sob custódia israelense. As circunstâncias podem ainda provocar outra revolta. Jaradat foi preso em sua casa à meia-noite (uma hora apropriada para intimidar sua família), e acusado de ter atirado pedras e coquetéis molotov alguns meses antes, durante o ataque de Israel à Faixa de Gaza em novembro.

Jaradat, saudável quando foi preso, foi visto pela última vez vivo no tribunal por seu advogado, que o descreveu como “dobrado, assustado, confuso e encolhido.” Depois de 12 dias de detenção, Jaradat foi encontrado morto em sua cela. Um jornalista  escreveu que “os palestinos não precisam de uma investigação israelense. Para eles, a morte de Jaradat é uma prova de que o sistema israelense rotineiramente usa a tortura. O objetivo da tortura não é só condenar alguém, mas dissuadir e subjugar todo um povo. ”

A necessidade de humilhar aqueles que levantam suas cabeças é um elemento indelével da mentalidade imperial.

No caso de Israel-Palestina, há muito tempo existe um consenso quase unânime internacional sobre um acordo diplomático, bloqueado pelos Estados Unidos há 35 anos, com a aceitação tácita europeia. Desprezo pelas vítimas sem valor não é pequena parte do obstáculo a um acordo com pelo menos um mínimo de justiça e de respeito pela dignidade humana.

A não ser que os poderosos sejam capazes de aprender a respeitar a dignidade das vítimas, barreiras intransponíveis permanecerão, e o mundo estará condenado à violência, à crueldade e ao sofrimento amargo.