O que Padre Júlio Lancellotti tem a ver com o Pantanal? Por Camilo Vannuchi

Atualizado em 17 de setembro de 2020 às 17:08
Padre Julio Lancellotti (Foto: Reprodução)

Publicado no Prerrô

POR CAMILO VANNUCHI

Cecília Meireles tem um poema que diz o seguinte: “Toda vez que um justo grita, um carrasco vem calar. Quem não presta fica vivo; quem é bom, mandam matar”.

Proponho um jogo rápido. Sei que você que lê este texto é uma pessoa justa, solidária, cheia de boas intenções e versada na arte de amar o próximo. Por isso vamos brincar de advogado do diabo: reunir os argumentos de quem tem uma percepção diferente.

O Pantanal, por exemplo. Ele está lá, neste momento, pegando fogo. Pegar fogo não é apenas uma gíria para “bombar” ou “agitar”. O Pantanal não está em festa. Ele está em chamas. Uma parte importante de seu território vai virar cinzas, fumaça. E, meses depois, pasto. Até agora, 2 milhões de hectares já foram consumidos pelo fogo no Pantanal, a mesma área do Estado de Sergipe, ou treze vezes o município de São Paulo.

Agora, vejamos. Para que serve o Pantanal? Tudo bem, ele é bonitinho. Tem tamanduá bandeira, tuiuiú e mais de 1.100 espécies diferentes de borboleta, segundo a Wikipedia. Parece ser um lugar legal para dar um rolê, postar umas fotos, gravar uns reels. Mas e daí? O Pantanal é produtivo? De que forma ele ajuda o país a crescer?

Outra coisa: você já reparou no tamanho do Pantanal? São quase 200 mil quilômetros quadrados! Praticamente a área do Estado do Paraná, ou quatro vezes o Estado do Rio. Sem nenhum shopping, nenhuma refinaria, nenhuma montadora ou loja da Kopenhagen. Definitivamente, não é um lugar condizente com um país que vai pra frente.

Não seria melhor acabar com essa babaquice de reserva ambiental, bioma sei lá das quantas, e transformar tudo aquilo numa grande fazenda? Gado também tem direitos. Podia transformar uma parte num grande estacionamento. Isso depois de aterrar tudo. A parada tem nome de Pantanal, vai que inunda e estraga os carros. Imagina a dor de cabeça com as seguradoras.

Agora pensa que lindo: vias de acesso asfaltadas, charcos aterrados, metade da área destinada ao agronegócio e a outra metade ao empreendedorismo e à indústria. Pronto. Pode instar uma filial da Havan e uma franquia do Habib’s. Ordem e Progresso. Deus acima de todos.

A mesma coisa pode ser dita sobre o povo da rua, os miseráveis que se espalham pelas calçadas de São Paulo. Eles eram 24.300 no final de 2019, segundo levantamento divulgado pela Prefeitura no início deste ano. Essa população havia crescido 53% desde 2015, quando foram estimados 15.900 indivíduos nesta situação. Hoje, a percepção empírica de quem trabalha com cidadãos em situação de rua é de que esse montante aumentou ainda mais durante a pandemia.

Pois bem. Vamos aos argumentos daqueles que acham que sabem tudo sobre o assunto: Para que servem os excluídos? O que eles produzem? Você sabia que a maioria tem casa e prefere morar na rua? E que eles se aglomeram no Centro porque sempre tem uma marmita de graça, uma carteira pra bater, um celular para surrupiar? E você sabia que eles desprezam os albergues, né? E se aglomeram nas portas das igrejas de propósito, para provocar compaixão. Ficou com pena? Leva pra casa!

De dentro do fogo encantado, de Miranda a Poconé, os carrascos do Pantanal tentam calá-lo. O Pantanal atrapalha, limita, incomoda. Os donos dos maiores frigoríficos do país, os barões do agronegócio, poderiam assumir para si a iniciativa do combate e evitar a tragédia. Aviões, brigadas de incêndio, infraestrutura, há muito o que o dinheiro pode mandar buscar. Mas e o pasto dos sonhos, a lavoura de soja, o shopping? Perícias feitas pelo Corpo de Bombeiros mostraram que muitos dos primeiros focos de incêndio em reservas ambientais tiveram início em fazendas vizinhas e que teriam sido estimulados. No Pantanal, como em Sampa, já não nos rebelamos contra a força da grana que ergue e destrói coisas belas. Nem com a feia fumaça que sobe apagando as estrelas.

Em São Paulo, os excluídos, a população que habita as margens da cidade e da sociedade, é, ela também, um incômodo. Feia, arisca, malcheirosa, impertinente. Desagradável e teimosa. Pega fogo, vira fumaça, alaga, perde tudo. Mas resiste.

Padre Júlio Lancellotti é a melhor tradução dessa resistência. Pregador incansável, evangelizador destemido, testemunho vivo de acolhimento e entrega, Padre Júlio é dos raros religiosos que ainda enxergam aqueles que a maioria prefere fingir que não vê. A ira dos conservadores veio a galope. Não poderia ser diferente. Que padre é esse que defende a dignidade humana dos nóias? Que padre é esse que alimenta quem tem fome e abraça travestis? Que padre é esse que zela pelo direito à saúde de dependentes químicos e soropositivos quando a institucionalidade some? Que padre é esse que denuncia políticas higienistas, venham do governo que for, e se põe ao lado dos mais fracos?

Para o prefeito Bruno Covas, Padre Júlio é um “incômodo necessário”. Para um histriônico vereador paulistano, também candidato a prefeito, é um “cafetão da miséria” e “uma das maiores farsas do Brasil”. Nesta semana, após seis meses de intensa dedicação à nobre missão de reduzir o impacto da pandemia entre os mais necessitados, Padre Júlio precisou registrar um boletim de ocorrência por, segundo ele, estar sendo ameaçado.

“Toda vez que um justo grita, um carrasco vem calar. Quem não presta fica vivo; quem é bom, mandam matar”. Cecília Meireles tinha razão.