O que são os “autos de resistência” da PM e por que eles têm de acabar

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 14:57
O ator Vinicius Romão, preso "por engano" no Rio
O ator Vinicius Romão, preso “por engano” no Rio, fala no Largo de São Francisco

 

A prática genocida da PM nas periferias carrega uma aberração institucional. A classificação “auto de resistência” para definir esses homicídios tornou-se comum. Em 2011, 42% das mortes foram registradas como autos de resistência nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Grande parte deles contra negros.

Grupos de entidades ligadas aos Direitos Humanos e diversos movimentos sociais como Levante Popular, Juventude e Movimento Negro, organizaram um evento na faculdade de Direito da USP no Largo São Francisco na noite de ontem, em apoio à aprovação de um projeto de lei de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP). Ele propõe várias medidas, inclusive a alteração da denominação “autos de resistência” (ou “resistência seguida de morte”) nos registros das ocorrências, para algo como “lesão corporal (ou morte) decorrente de intervenção policial”.

“Isso é um entulho da ditadura e continua existindo. No Rio de Janeiro foram analisados 12 mil autos de resistência e 60% deles foram execução pura e simples, muitas com tiro na nuca. Queremos que essas pessoas respondam por homicídio”, disse Paulo Teixeira.

O projeto é de 2012 e vem sofrendo para ser votado.

A ministra Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, colocou o dedo na ferida: “A sociedade brasileira sofreu mudanças absolutamente significativas nos últimos dez anos. Mudanças não apenas materiais, mas de valores. Na medida em que as pessoas negras foram conquistando mais direitos, mais oportunidades, isso provoca outros mandamentos no interior da sociedade. As reações aos rolezinhos são um exemplo. As autoridades estaduais de segurança pública precisam ser chamadas para debates como esse. Porque para nós é mais difícil, a partir do governo federal ou do congresso nacional, produzir os resultados que queremos do ponto de vista da aprovação desse PL. Fundamentalmente, quem se coloca contra esse projeto são as intituições policiais.”

Uma pesquisa feita pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com dados oficiais, aponta que o número de negros mortos em decorrência de ações policiais para cada 100 mil habitantes em São Paulo é três vezes maior que o registrado para a população branca. Os dados revelam que 61% das vítimas da polícia no estado são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. Já os policiais envolvidos são brancos (79%), sendo 96% da Polícia Militar. Ou seja, o racismo institucionalizado.

Vinícius Romão, ator que permaneceu preso durante 16 dias por ter sido “equivocadamente” confundido pela vítima de um assalto, deu seu relato. “O policial apontou a arma para minha cabeça por causa da minha cor de pele. E só não fui mais um ‘auto de resistência’ porque em nenhum momento pensei em correr. Fiquei tranquilo porque sou formado em psicologia e acreditei que em poucos minutos o erro fosse solucionado. Mas fui levado como flagrante e 157 (assalto a mão armada). Eu não fui parado na mesma rua da ocorrência nem estava com arma nenhuma. Fui parado porque tinha o cabelo black power. Só o que chamou a atenção da mídia foi quando anunciaram que um ator de novela havia sido confundido. ‘Ator de novela’ vende mais jornal do que ‘negro’.”

Além da alteração da denominação, o PL 4.471/12 traz outros avanços. Obriga a preservação da cena do crime; obriga a realização de perícia e coleta de provas imediatas; veta o transporte de vítimas em “confronto” com agentes, que devem chamar socorro especializado (isso já é adotado no estado de São Paulo e não coincidentemente diminuiu o número de mortes em 39%); define a abertura de inquérito para apuração do caso.

Há uma conivência de boa parte da sociedade com a política violenta exercida pelas polícias. Isso precisa ser combatido. É um câncer que se alastra.

Não pensemos apenas nas vítimas. Pensemos nos parentes, nos cônjuges, nos filhos das vítimas. Nos que “sobraram”. Quais as consequências emocionais de saber que o assassinato de um ente querido está cínicamente registrado como “auto de resistência”? Dá para suspeitar que a simpatia pela PM não irá se aprofundar, certo? Não é difícil imaginar que o sentimento de ódio e vingança brotem a partir daí. Se uma criança vê seu pai tomar um enquadro e ser humilhado e agredido apenas pela cor de sua pele, qual o trauma futuro tanto para ela (com todas as sequelas ao longo de sua vida), como para a sociedade que arcará com a eternização do problema.

Pode parecer de menor importância exigir a substituição de um procedimento de registro. Mas chegar a ser irônico que se denomine auto de resistência. Se uma das partes morreu, quem resistiu?