O que uma série da Croácia na Netflix ensina sobre jornalismo e poder no Brasil. Por Tiago Barbosa

Atualizado em 29 de julho de 2018 às 10:02

POR TIAGO BARBOSA

O exercício do jornalismo tem se equilibrado com sofreguidão para manter o vigor de outrora. Amarga a proliferação das fake news, lida com perda de credibilidade de veículos tradicionais e sente a queda da publicidade seduzida cotidianamente pela presença de plataformas digitais como Google e Facebook.

O calvário é ainda mais penoso para os jornais impressos: definham sob a fuga de anunciantes, a incapacidade gerencial de estabelecer novas receitas e a mudança de hábitos de leitores cada vez mais atraídos tanto pela facilidade quanto pela diversidade da internet.

As entranhas desse sistema corroído constituem a matéria-prima de uma série de TV croata cujos 12 capítulos da primeira temporada foram recém-disponibilizados na Netflix. A produção O Jornal (de 2016, chamada Novine no idioma natal) é zelosa em transpor para a tela os efeitos da influência da força política e econômica sobre a imprensa e em amplificar a reflexão urgente em torno da atividade jornalística quando profissionais enfrentam a pressão do poder.

O seriado narra a aquisição do jornal por um magnata da construção civil íntimo do círculo corrupto do prefeito para fazer do veículo porta-voz dos próprios interesses – seja usá-lo como instrumento político a favor do colega, seja abafar a investigação em torno de um acidente relacionado à família. O periódico, apontado como último reduto de independência jornalística da região, enfrenta crise financeira a ponto de as máquinas de impressão falharem com frequência.

A narrativa estrutura dois polos antagônicos ocupados por políticos e empresários endinheirados, de um lado, e pela redação, do outro – reprodução do confronto entre patronato e trabalhadores – e tem no centro do confronto os limites da ingerência sobre a linha editorial da publicação. A dinâmica da história mostra como o poder desequilibra a disputa, coloniza o jornalismo e desafia a integridade tanto da instituição quanto dos profissionais.

O conflito produz situações típicas das redações contemporâneas – e bem familiares aos jornais brasileiros: a formulação de dossiês para incriminar adversários, o abafamento de temas contrários aos desejos do dono, a demissão de jornalistas críticos à linha editorial ancorada na prevalência do interesse privado sobre o público.

A abordagem das nuances em torno dessas práticas enriquece o seriado ao mostrar como a conduta dos jornalistas e dos poderosos influencia e é suscetível a implicações da esfera familiar, afetiva e particular. A disposição deixa flagrantes contradições éticas de quem defende a notícia no trabalho, mas vaza informação quando interessa ao parente ou é flexível com o rigor da apuração a depender do tema da reportagem.

Outro ponto bem explorado pela série é a fragilidade da submissão dos jornalistas aos patrões para ascender na carreira – em geral, marcada pela supressão dos princípios jornalísticos em favor da adesão acrítica à diretriz do chefe. A sujeição justifica, em parte, o crescimento na hierarquia da empresa. Com um dano colateral: o alinhamento enterra a pluralidade editorial, compromete a busca pelo contraditório, privilegia a versão da corporação e torna homogênea a informação – práticas recorrentes no Brasil, onde cinco famílias controlam os principais grupos de mídia e tentam inibir fontes jornalísticas divergentes.

A resistência à intervenção não escapa à série. E se escora justamente na internet como espaço alternativo ao rolo compressor da mídia convencional – embora os limites éticos sejam colocados à prova em sites cujos conteúdos prezam mais pelo clique e menos pela relevância da informação.

A zona de permanente conflito ético e profissional é reforçada pelas atuações corretas e pela construção de personagens complexos, ambíguos, incoerentes, carregados de pragmatismo e familiarizados com a rotina real do jornalismo. Eles são apresentados sempre com nervos à flor da pele, espremidos entre a tensão do trabalho e os problemas particulares – e tensionados a consumir sexo e álcool como escapismo aos problemas cotidianos, embora o clichê etílico associado à profissão seja um tanto exagerado.

O enquadramento nervoso da câmera, trêmula a todo momento, e o slow motion usado em determinados trechos – além da captação do rosto de um ator diferente a cada capítulo com expressão de desespero e imerso na água – ampliam a alternância entre estados de turbulência e introspecção, apesar de os recursos da filmagem serem mais presentes do meio para o fim da série.

A atenção dedicada à faceta pessoal dos personagens humaniza a abordagem do assunto e introduz as particularidades de cada indivíduo como ângulo de observação significativo para a compreensão da trama e das reflexões sobre a própria prática jornalística. Situações de convivência, como namoros e amizades, ou sentimentos latentes, como egoísmo e inveja, assumem papel-chave sobre a conduta e dialogam com as pressões inerentes ao ambiente profissional – assim como ocorre fora da tela.

O realismo das situações apresentadas na produção deriva diretamente da experiência vivida pelo autor, Ivica Rijeka, jornalista e ex-editor de um jornal independente comprado por um milionário interessado em intervir na linha da publicação. A primeira parte se debruça sobre a mídia. As restantes, sem previsão de estreia, têm mira já definida: a política e o judiciário.

Mas o drama deve permanecer circunscrito aos dilemas enfrentados pelo jornal como metáfora para a reflexão sobre o papel da imprensa. Os próximos capítulos, na verdade, têm potencial para ajudar a compreender a situação na qual se enfiaram os veículos de mídia da atualidade – afinal, como prova o Brasil pós-golpe, é impossível separar a prática jornalística dos tentáculos da justiça e da política.