“O racismo no futebol reflete a sociedade: o negro é raramente técnico ou dirigente”

Atualizado em 2 de setembro de 2014 às 18:57
aranha
Aranha, do Santos

Publicado na DW.

 

Um novo caso de racismo no futebol brasileiro reacendeu o debate sobre a discriminação racial nesse esporte, visto por muitos como um espaço de igualdade e inclusão – por reunir milhares de pessoas em torno de um mesmo símbolo, o time –, mas que, às vezes, parece reforçar diferenças e preconceitos.

Durante uma partida da Copa do Brasil, na quinta-feira passada (28/08), em Porto Alegre, torcedores do Grêmio xingaram o goleiro Aranha, do Santos, com palavrões de cunho racial. O jogador foi chamado de “macaco” e “preto fedido” por alguns gremistas.

Aos 42 minutos do segundo tempo, Aranha reclamou com o árbitro Wilton Pereira Sampaio sobre as agressões. O juiz, porém, mandou a partida seguir. Na sexta-feira, o goleiro registrou boletim de ocorrência em Porto Alegre, afirmando que quatro pessoas estavam envolvidas nos xingamentos.

Para o historiador Luiz Carlos Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná, o ato de torcer em meio a uma multidão faz com que sentimentos que são controlados no convívio social cotidiano acabem expostos. Assim, o racismo presente na sociedade acaba aparecendo nos gramados.

“O racismo existe na sociedade, não é uma patologia do futebol, é uma doença social presente em toda a sociedade”, reforça o pesquisador, que coordena o grupo de estudos Futebol e Sociedade da universidade. No êxtase da torcida, alguns torcedores parecem se esquecer que estão num lugar público e, sentindo-se protegidos pelo anonimato, acabam tendo atitudes que normalmente não teriam.

“O futebol funciona como uma ‘válvula de escape’ para uma minoria de torcedores. As frustrações da vida cotidiana, como desemprego, moradia precária, desassistência nas áreas da saúde e educação, notícias sobre corrupção, levam uma parte da torcida a se manifestar agressivamente no estádio, onde essas pessoas acreditam estar protegidas pelo anonimato”, afirma o jornalista Manuel Alves Filho, do grupo de pesquisas e estudos de futebol da Unicamp.

Discriminação histórica

Casos de discriminação racial fazem parte da história do futebol desde que o esporte chegou ao Brasil. No início, o esporte adotado pela elite excluiu os negros. No Brasil, em alguns clubes eles eram proibidos de jogar até a década de 1950, como no caso do Grêmio. O Vasco da Gama foi o primeiro clube a aceitar oficialmente esportistas negros.

“Ao longo do século 20, o negro foi se inserindo, mas sempre com um lugar bem definido dentro da estrutura esportiva futebolística: como atleta, mas raramente como dirigente ou técnico”, afirma Ribeiro.

O racismo não aparece somente nas partidas. Alves Filho lembra que a exclusão também está enraizada na própria estrutura do futebol. “Ao contrário do que algumas pessoas defendem, esse esporte não é um espaço onde prevalece a democracia racial. A democracia racial no futebol é um mito. Um exemplo disso é que negros e mestiços encontram-se sub-representados na estrutura de poder do futebol. As funções mais elevadas continuam reservadas aos integrantes de uma elite majoritariamente branca”, argumenta.

Se, por um lado, a discriminação racial é menos forte do que em outras épocas, por outro ela ocupa hoje mais espaço na mídia. “O racismo era mais evidente em outras épocas, porém hoje existe uma consciência maior da repercussão de uma atitude como essa, e também temos uma legislação que coíbe esses atos”, diz o pesquisador Silvio Ricardo da Silva, do grupo de estudos sobre futebol e torcidas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Segundo um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo, somente neste ano já fora registrados 12 casos de discriminação racial nos gramados brasileiros. Além de jogadores, as vítimas foram árbitros e também profissionais de imprensa.

Prevenção e punição

Para especialistas, a melhor forma de se combater o racismo, dentro e fora dos campos, é a prevenção, além da punição para os envolvidos. Políticas educativas, aplicadas em escolas e meios de comunicação, são fundamentais para acabar com a discriminação.

“O racismo presente no futebol é o mesmo presente na sociedade. Ele precisa ser entendido e enfrentando num plano mais amplo, e não apenas num segmento específico. Temos que mostrar às novas gerações que o Brasil é um país miscigenado, e que esse aspecto é uma herança positiva, responsável pela formação da nossa gente. Temos que ensinar as crianças que ninguém deve ser avaliado pela cor da sua pele”, defende Alves Filho.

Além de campanhas de combate ao racismo, Ribeiro reforça que não somente os envolvidos, mas também as torcidas, assim como os clubes, devem ser punidos nesses casos. “Medidas de punição, inclusive do clube, com perdas de jogos e até mesmo exclusão de campeonato, como acontece na Europa, vão criando uma cultura e uma consciência de autocontrole”, opina.

Silva lembra também da importância dos clubes para evitar casos de discriminação. “O clube, às vezes, não é diretamente culpado, mas ele tem que se esforçar para tentar coibir”, afirma.

O jornalista esportivo Juca Kfouri discorda da punição aos clubes e reforça que a punição individual é fundamental para acabar com esse crime. “Se os clubes tomarem as atitudes necessárias para identificar os responsáveis e entregá-los às autoridades, penso que não devem responsabilizados”, opina.

Torcida suspensa

A torcedora gremista flagrada pelas câmeras da emissora de televisão ESPN xingando o atleta e mais quatro torcedores foram identificados pelo Grêmio. As informações foram repassadas para a polícia pelo clube.

O clube também suspendeu a torcida organizada Geral do Grêmio por tempo indeterminado após ela entoar cantos que citaram a palavra “macaco” durante a vitória sobre o Bahia neste domingo.

O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) suspendeu o jogo de volta entre Grêmio e Santos até o julgamento do caso, programado para esta quarta-feira. O Grêmio responde por ato de discriminação racial por parte dos torcedores e pode ser excluído da Copa do Brasil, além de pagar multa de até 100 mil reais.