O risco das lojas Americanas. Por Fernando Nogueira da Costa

Atualizado em 17 de janeiro de 2023 às 15:34
Fachada da Lojas Americanas. Foto: Reprodução

Por Fernando Nogueira da Costa*

Publicado originalmente no A Terra é Redonda

Ficou evidente, tanto para a opinião especializada, quanto para a opinião pública, a estratégia adotada pela rede comercial de varejo

Os economistas não dispõem de um laboratório com CNTP (Condições Normais de Temperatura e Pressão) para testar suas hipóteses. Por isso, a realidade viva é seu campo de análise aplicada.

Um estudo de caso de crise, ao contrário de quem sofre suas consequências, lhes deixa “felizes como um pinto no lixo”. Uns idealistas dizem trabalhar em abstrato com a hipótese irrealista de equilíbrio ou “o que deveria ser”, justamente, para demonstrar essa realidade ser anômala. Outros, materialistas, trabalham com o “concreto pensado”, depois de abstrair suas hipóteses da concretude da realidade, ou seja, “o que é”.

Os oportunistas aproveitam o caso para apressadamente fazer autopromoção, tipo torcedor em fim de jogo quando levanta o cartaz “eu sabia!”. Praticam a “profecia reversa”, isto é, julgam o processo a partir da linha-de-chegada.

Evito esta prática sobrenatural da onisciência. Mas não resisto a citar, para quem deseja circunstanciar com maior profundidade o estudo do caso das Americanas, meu texto para discussão, “Tempo e Dinheiro  em Compras e Vendas a Prazo”, postado no site do Instituto de Economia da Unicamp em julho de 2022.

Por qual razão? Nele defendo a hipótese, com base em fatos e argumentos lógicos, de “a diferença entre o tempo de pagamentos e o tempo de recebimentos é decisivo para se manter no negócio de comércio varejista. Busca-se obter um tempo para pagamentos dos fornecedores suficiente para já ter obtido a suficiente receita de vendas das mercadorias compradas deles”.

Mais uma vez a hipótese foi testada, desta feita no mundo real. Corresponde ao risco sacado das lojas Americanas, também chamado de “forfait” (falta a um compromisso), empregado na rolagem do financiamento a fornecedores.

Ficou evidente, tanto para a opinião especializada, quanto para a opinião pública, a estratégia adotada pela rede comercial de varejo. Foi operar mais com o capital de outros em lugar do próprio capital. O capitalista mais hábil nesse jogo poderá se alavancar, abrir capital, associar-se e elevar o capital próprio como garantia do uso do capital de terceiros. Aumentar a escala e a lucratividade com essa alavancagem financeira é o segredo do negócio capitalista.

Não seria incomum os comerciantes buscarem esticar o prazo de pagamento aos fornecedores e encurtar o de recebimento dos clientes. Paradoxalmente, em Terrae Brasilis, o vendedor força o comprador pagar a prazo com cartões de crédito!

O “cartão da loja” era incentivado como meio de pagamento nas Lojas Americanas. Reprodução

O comprador raciocina: gosto de ele pensar estar me enganando com preço a prazo igual ao preço a vista, mas ao pagar mais adiante vou contar com mais rendimentos de juros, em tese, perdido por ele, vendedor. “Tempo é dinheiro” segundo uma máxima da teoria das finanças, relacionada ao fluxo de caixa futuro trazido ao valor presente, isto é, descontado do custo de oportunidade esperado durante o período.

O problema dessa “inversão ao espelhar” é o custo de vida no país ser mais elevado em relação a uma economia com diferenciação entre preços à vista e a prazo. Ocorre por conta do repasse do custo das vendas a prazo para todos os compradores com o mesmo preço, usando ou não cartões de crédito com “datas de aniversário” futuras.

Muitas empresas não-financeiras negociam com o tempo – e não com o dinheiro, pois não o têm! Buscam pagar a prazo e descontar recebíveis para obter dinheiro à vista. Aí, com o dinheiro adiantado das vendas pagam os compromissos de compra. Para usar recursos de terceiros na alavancagem financeira de seu negócio, buscam a antecipação de recebíveis dos clientes-compradores junto aos bancos comerciais. Antes, as vendas eram por meio de cheques, agora, são por meio de cartão de crédito.

A denominação bancos comerciais teve origem histórica nessas operações de desconto, isto é, cobrança de uma comissão para adiantamento do dinheiro ao comerciante de suas vendas a serem recebidas a prazo. O chamado redesconto, feito pela Autoridade Monetária, era o empréstimo de liquidez concedido por ela aos bancos, garantido pelos títulos comerciais recebidos nos compromissos de pagamentos.

As parcerias entre grandes redes varejistas com bancos, para também adiantar esses recursos aos seus fornecedores, se multiplicam. Porém, quem tem menor poder de barganha – o pequeno empresário de um único estabelecimento comercial – necessita negociar as condições em taxas de desconto, para conseguir obter alguma vantagem nessa “indústria de recebíveis”, e socorrer de imediato o caixa.

Qual foi a decisão crucial, capaz de alterar o contexto de maneira irreversível, a não ser à custa de assumir prejuízo, ou de “tirar o equilíbrio estável da economia”? No ano passado, varejistas e empresas de serviços trataram de retomar suas vendas, mas sentiram uma deterioração relevante no grau de endividamento, porque o regime de meta de inflação, abaixo da atual realidade mundial, levou o COPOM (Comitê de Política monetária) do Banco Central do Brasil a colocar o juro real a 8 pontos percentuais (grosso modo, 13,75% – 5,75%), o maior do mundo!

A expectativa de a recessão mundial, devido ao fenômeno generalizado de elevação inflacionária e alta dos juros, contamina as decisões de investimento. A fraca geração de caixa pode complicar o quadro de alavancagem financeira das atividades comerciais.

A análise dos balanços de uma amostra representativa das empresas de comércio e serviços mostra, enquanto a dívida financeira líquida dos grupos quase dobrou, a geração de caixa operacional se elevou bem menos, aumentando a pressão sobre o nível de endividamento. Elevou o grau de fragilidade financeira.

No mesmo intervalo, o valor do lucro antes de juros, impostos, amortização e depreciação (EBITDA, da sigla em inglês) avançou em ritmo menor, em cerca de 1/5 no ano. Com isso, a relação entre dívida líquida e lucro operacional (EBITDA) foi além do dobro, embora com aceleração rápida em prazo curto ainda esteja em patamar abaixo de duas vezes, considerado o nível crítico.

 

A área contábil da Americanas identificou a existência de operações de compras feitas pela companhia em valores de R$ 20 bilhões —Gráfico: Valor Econômico

Com a projeção o PIB crescer menos em 2023 em comparação a 2022, por causa de recessão mundial e ajuste fiscal local, como “freada para arrumação”, o cenário é de receitas também fracas. Por conta disso, as empresas terão planos de investimentos mais conservadores para este ano, de forma a proteger o caixa, e manter prioridade em reduções de custos e despesas. Ainda precisarão continuar a trocar (refinanciar ou rolar) dívidas em condições impagáveis nesse ambiente de juros elevados.

Apesar de a Selic ter um efeito positivo nas receitas financeiras, as despesas financeiras crescem mais aceleradamente se comparadas às receitas. As empresas pagam, em suas linhas de crédito ou debêntures, percentuais do CDI. Com juros pós-fixados, sempre ficam acima do rendimento obtido em suas receitas financeiras com juros prefixados.

Pessoas comprando em Loja da Americanas: Foto: Hermes de Paula/O Globo

O capital de giro tem prejudicado o fluxo de caixa dessas companhias de varejo. Deve melhorar caso ajustem seus estoques para um ambiente de consumo mais restrito.

Milhares de acionistas minoritários, pequenos investidores em ações, retiraram valores de sua poupança, fruto de sacrifício em consumo, confiando na robustez e no alto índice de governança corporativa da Americanas. Foram iludidos com as anunciadas boas perspectivas de crescimento, registradas na análise dos seus balanços divulgados, e adquiriram ações dela, até então a maior rede varejista do país.

No entanto, foram detectadas inconsistências em lançamentos contábeis, redutores da conta de endividamento junto a fornecedores, realizados em exercícios anteriores. Após buscar na Justiça uma medida cautelar preparatória para sua recuperação judicial, a Americanas começa a estruturar um plano de venda de ativos – formas de manutenção de riqueza –, nem todos tão líquidos.

Pressionada para levantar capital em meio a uma das maiores crises da história corporativa brasileira, a varejista colocará subsidiárias ou coligadas em negociação. A venda de ativos, para restaurar o caixa (disponibilidades), é um movimento obrigatório, um pilar do tripé completado com capitalização e renegociação de dívidas.

Para conseguir mais prazo para o pagamento de dívidas, sua direção recebeu uma série de exigências, sendo a principal delas uma capitalização imediata por seus controladores, o bilionário trio 3G – Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.

No entanto, os bancos credores receberam com surpresa a notícia de a Americanas ter conseguido uma liminar na Justiça, suspendendo qualquer pagamento das dívidas totais, declaradas em R$ 40 bilhões. “É uma vergonha, isso mostra o caráter dos caras do 3G”, disse um porta-voz de banco. Prometeu não fazer mais negócios com o trio: “com a gente nunca mais!” O mundo gira, a Americanas roda… E quem se equilibra?

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento.

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