O roubo da placa do viaduto D. Marisa Letícia diz muito sobre os “cidadãos de bem”. Por Carlos Fernandes

Atualizado em 17 de janeiro de 2018 às 11:56
O viaduto D. Marisa Letícia

Num país onde a corrupção é desenfreada, a violência é generalizada e o poder judiciário tornou-se o principal fiador da manutenção dos privilégios da elite e da desigualdade econômica que assola nosso tecido social, pode parecer algo banal, irrelevante até, mas o roubo da placa que identificava o viaduto D. Marisa Letícia na capital paulista diz muito sobre as “pessoas de bem” desta nação.

Instalada há menos de uma semana, nem mesmo a cerimônia de inauguração foi permitida pelo milionário prefeito de São Paulo, João Dória. Inconformado com a homenagem prestada pela Câmara Municipal, ela só foi colocada lá a muito contragosto e por pura exigência legal.

O fato é que ao roubarem uma simples placa sem qualquer valor material, o que fica explícito, mais do que o preconceito, é o ódio ensandecido que uma parcela significativa do povo brasileiro criou – mais do que por pessoas particularmente – por uma ideia específica: a de que é possível uma revolução social a partir da ascensão de um proletariado.

Não se trata em absoluto, como já é sabido, de qualquer “combate à corrupção”. Até porque Dona Marisa jamais foi condenada por qualquer crime.

Trata-se, isso sim, do reflexo prático de uma sociedade que perdeu completamente os parâmetros de decência, dignidade, empatia e justiça para com outros semelhantes que não compartilham de suas mesmas visões de mundo.

De uma forma sem precedentes na história do Brasil, uma elite soberba e uma classe média tacanha fizeram do saudável e necessário debate político, uma cisão irreparável de vertentes ideológicas que acabaram por deixar o campo das ideias para se digladiarem da forma mais estúpida e vergonhosa no meio físico de toda a sociedade.

E é na completa e constrangedora ausência de argumentos minimamente decentes que se veem obrigados a exporem os seus verdadeiros “eus”.

Dona Marisa foi assassinada vítima da intolerância. Ainda quando estava internada, as demonstrações de “amor” e “carinho” recebidas de uma classe de médicos que, até por dever profissional, deveria torcer pelo seu pronto restabelecimento, já avisava que o seu martírio só começava.

As difamações que se seguiram após o seu falecimento proferidas pelos “cidadãos de bem” repisando mentiras, enredos, farsas e trapaças criadas pela grande mídia nacional e pelo próprio judiciário, não permitiram sequer que Lula, seu companheiro de décadas, tivesse paz para chorar a sua morte.

Não querem apenas destruir, seja de que maneira for, os avanços sociais criados na última década e que acabaram por merecerem o respeito do mundo inteiro. Querem destruir o próprio direito de existirem, de serem lembrados pelos seus feitos, de serem reconhecidos pelas coisas boas que fizeram.

Exatamente por isso arruinam homenagens, exatamente por isso condenam sem provas, exatamente por isso preferem uma nação em frangalhos à permitirem que pessoas pobres tenham alguma chance na vida.

Ignoram, no entanto, que ao roubarem uma mísera placa que homenageava Dona Marisa Letícia, deixaram nuas suas próprias essências, desnudos seus próprios caracteres, despidos seus velhos preconceitos.

Albert Camus, o grande escritor e filósofo franco-argelino, uma vez disse que o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.

De uma certa forma, essas pessoas que desejaram a morte de Dona Marisa Letícia, que desejam a prisão de Lula provocada por um processo judicial viciado e escandaloso, que não admitem uma vida melhor para pessoas menos favorecidas, que não se envergonham sequer de roubarem placas de viaduto e que ainda assim se julgam “de bem”, na verdade estão se recusando a admitir o que realmente são: covardes.

Tristes e infames covardes.