O socialismo e a criação de galinhas. Por Gilberto Maringoni, de Caracas

Atualizado em 9 de outubro de 2019 às 9:37
O socialismo e a criação de galinhas. Foto: Reprodução

Crônicas caraquenhas – 2
Na última semana de setembro, passei uma semana em Caracas, graças ao crowdfunding realizado pelos apoiadores do DCM.

De lá, enviei uma série de reportagens e vídeos, comentando os dilemas políticos da Venezuela. Completo agora a cobertura com algumas crônicas sobre o dia a dia da capital.

O SOCIALISMO E A CRIAÇÃO DE GALINHAS

CENA 1

Em uma das manhãs de minha estada em Caracas, há três semanas, assisti parte de uma reunião de militantes do PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela). O tema era a transição ao socialismo. Como se sabe, a partir de 2005, Hugo Chávez definiu que o objetivo do processo denominado “revolução bolivariana” é a construção de uma nova sociedade. A conversa naquela manhã versava sobre os entraves internos e externos para a transformação pretendida.

CENA 2

Acompanhei, no dia seguinte, a distribuição periódica de proteína à população. Explico: diante da queda vertical do valor dos salários – o mínimo equivale a dois dólares – o governo Maduro criou uma série de compensações que funcionam como salários indiretos. Entre elas estão a gratuidade do metrô de Caracas e da gasolina, o preço ínfimo cobrado nas contas de luz e água e um bônus familiar que chega a 25 dólares por mês. Coroando tais programas está a distribuição de cestas básicas a toda população, que traz mensalmente macarrão, arroz, açúcar, óleo de cozinha, lentilha ou feijão, café e leite em pó. Falta carne, ou proteína animal.

Por esse motivo, sempre que há disponibilidade nos estoques oficiais, a população tem acesso gratuito a carne vermelha, frango ou peixe.

Há filas imensas nos órgãos oficiais ou centros comunitários que realizam a distribuição. Uma amiga saiu de um desses postos, no centro de Caracas, com um saquinho plástico nas mãos, recheado por duas grandes postas de atum. São dois quilos que devem durar até a próxima chegada do alimento, que pode ser daqui a quinze dias ou um mês.

Perguntei se o peixe vinha do litoral venezuelano. “Não”, respondeu ela, “vem do Chile”.

CENA 3

Horas depois visitei uma “urbanización”, numa das principais avenidas da capital. Trata-se de um edifício com 250 apartamentos, erigido no programa “Gran misión vivenda”, semelhante ao nosso “Minha casa, minha vida”. Há seis prédios desse tipo, muito próximos entre si.

Cada um comporta entre 1200 a 1300 pessoas e foram construídos a partir de 2011 para abrigar quem perdeu sua casa nos grandes temporais do ano anterior.

Os edifícios têm cerca de 100 metros de extensão por 30 de largura e seis pavimentos. Estão instalados em terrenos com pelo menos o dobro da largura. O espaço vago – em dois deles em estado de terra batida – é ocupado como estacionamento e área para crianças brincarem. Em um dos que visitei, há dois cercadinhos protegido por telas de metal. Perguntei se era utilizado para a criação de algum animal, como galinhas. A líder comunitária local me disse que não e brincou: “A galinha daqui vem de vocês e chega congelada”.

Provavelmente se referia ao frango Sadia, que o Brasil ainda exporta para lá.

CENA 4

Começo da noite do dia seguinte, gabinete de Eduardo Piñate, ministro do Trabalho, em outra região do centro. Piñate é professor de história, dirigente sindical e um tipo alto, falante e extremamente simpático. Foi ele quem me detalhou os diversos programas sociais oferecidos à população, mencionados acima. Depois de comentar a produção e a distribuição dos diversos itens, soltou uma frase que não me sai da cabeça: “Nosso objetivo é evitar a fome. Se não houver comida na mesa, o governo cai”. O bloqueio econômico imposto pelos EUA e a queda da produção de petróleo têm efeito devastador sobre a economia.

CENA FINAL

Juntei as peças. Falta proteína, remedia-se o problema importando-se frango ou peixe e distribui-se à população. As áreas livres das moradias visitadas são quase ociosas. Não entendo porque um governo preocupado com a alimentação popular – até para sua manutenção no poder – não traça um plano nacional de criação de galinhas. O governo poderia distribuir ninhadas de pintinhos em doses industriais, acompanhadas de boa quantidade de ração. Em três ou quatro semanas, os animais estariam botando ovos ou prontos para o abate doméstico. Algo semelhante foi feito em Cuba, entre 1992-95, no chamado “Período Especial”. O governo incentivou a população a criar porcos e galinhas. O colapso da URSS cortara uma série de programas e financiamentos à economia e a Ilha teve literalmente que se virar. Também durante os bombardeios alemães em Londres, em 1940, com o abastecimento em colapso, houve incentivos à constituição de hortas em todos os lugares possíveis.

Espero que o ponto seguinte ao debate sobre a transição ao socialismo nas reuniões do PSUV seja dedicado a medidas concretas. Galinheiros podem ajudar mais do que muita teoria na luta de classes.