O suicídio de Sabrina, a ativista que denunciou João de Deus, e a vida com um propósito. Por Daniel Trevisan

Atualizado em 3 de fevereiro de 2019 às 21:14

Sabrina Bittencourt, a ativista pelos direitos das mulheres que denunciou o médium João de Deus e o guru Prem Baba por abuso sexual, cometeu suicídio neste sábado.

A notícia foi postada no Facebook pelo filho de Sabrina, Gabriel Baum. “Ela deu o último passo pra gente poder viver. Eles mataram minha mãe”, escreveu. Sabrina tinha 37 anos e sofreu abuso quando criança.

A seguir, leia na íntegra o post despedida escrito por Sabrina Bittencourt:

“Marielle me uno a ti. Somos semente. Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos! Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos. VOCÊS TERÃO MILHARES DE MÃES NO MUNDO INTEIRO. Minhas irmãs e irmãos na dor e no amor, cuidem deles por mim… ❤️ Eu sempre disse que era só uma pequena fagulha. Nada mais. Só pó de estrelas como todos. USEM A SUA PRÓPRIA VOZ. A SUA PRÓPRIA VONTADE. TOMEM AS RÉDEAS DE SUAS PRÓPRIAS VIDAS E ABRAM A BOCA, NÃO TENHAM VERGONHA! ELES É QUEM PRECISAM TER VERGONHA. Não aguento mais. Todas as provas, evidências, sistemas de apoio, redes organizadas e sobretudo, meu legado e passagem por aqui está entregue ou chegará às mãos corretas. As REDES DE APOIO AOS BRASILEIR@S FORAM CRIAD@S E SE EXPANDIRÃO NA VELOCIDADE DA LUZ! Não se desesperem. Dessa vida só levamos o mais bonito e o aprendido. Paulo Pavesi, eu sinceramente sinto muito pela morte do seu filho. Tenha certeza, que se eu soubesse da sua história na época, implicaria minha vida e segurança como fiz com centenas de pessoas. Damares, eu sei que você não teve tratamento psicológico quando deveria e teve sequelas, servindo de marionete neste sistema de merda que te cooptou, acolheu e com o qual você se sente em dívida o resto da sua vida. Não tenho dúvidas que você amou e cuidou da sua “Lulu” como gostaria de ter sido cuidada e protegida na sua infância, mas ela nao é uma bonequinha bonita que você poderia roubar e sair correndo… Giulio Sa Ferrari, eu te considerei um irmão e você sabia de todas as minhas rotas de fuga… eu vi em você a pureza de um menino que nunca foi notado por uma sociedade neurotípica que não entendia os neuroatípicos, mas reputação é algo que se constrói e não é de um dia ao outro. Gabriela Manssur, muito obrigada por me fazer ter esperança de que elas serão ouvidas e atendidas em suas necessidades. João de Deus, Prem Baba, Gê Marques, Ananda Joy, Edir Macedo, Marcos Feliciano, DeRose Pai, DeRose filho, todos os padres, pastores, bispos, budistas, espíritas, hindús, umbandistas, mórmons, batistas, metodistas, judeus, mulçumanos, sufis, taoístas, meus familiares, Marcelo Gayger, Jorge Berenguer, eu desconheço a sua infância e a sua criação pelo mundo, mas sei no meu íntimo que TODO MENINO NASCEU PURO e foi abusado, corrompido, machucado, moldado, castrado, calado, forçado a fazer coisas que não queria, até se converter talvez, cada um à sua maneira, em tiranos manipuladores (em maior ou menor grau) que ao não controlar os próprios impulsos, tentam controlar a quem consideram mais frágil e assim praticam estupros, pedofilia, adicções diversas… Eu sei, eu sinto, eu vi. Mas ainda assim, preferi SEMPRE ficar do lado mais frágil nesta breve existência: mulheres, crianças, idosos, jovens, povos originários, afrodescendentes, refugiados, ciganos, imigrantes, migrantes, pessoas com deficiência, gays, pobres, lascados, fudidos, rebeldes e incompreendidos… Essa vida é uma ilusão e um jogo de arquétipos do bem e do mal, de dualidades… desde que o mundo é mundo. Vivo num outro tempo desde que nasci e sempre senti que vivia num mundo praticamente medieval. Volto pro vazio e deixo minha essência em PAZ. Aos meus amigos, amadas e amantes, nos encontraremos um dia! Sintam meu amor incondicional através do tempo e do espaço. SIM e FIM.”

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A morte é sempre um mistério, algo incompreensível, e dar fim à própria vida um mistério ainda maior. Não há explicação que satisfaça.

Portanto, não é para morte e sim para a vida de Sabrina Bittencourt que devemos olhar. A vida que teve um propósito, como ela mesma disse:

“Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês.”

Ela deu voz a quem sofria de um mal silencioso, às vezes por anos, às vezes a vida toda, em que o abusador busca a cumplicidade de sua vítima.

Sua luta foi para mostrar que esta, a vítima — seja mulher ou homem, também abusado — nunca é culpada. Nunca.

Era o que ela dizia a uma das mulheres que denunciaram João de Deus, e que também se matou, logo depois de estourar o escândalo.

A vítima se desesperou quando viu pela TV que João de Deus havia trabalhado normalmente em sua igreja, em Abadiânia.

Imaginou que não fosse dar em nada.

Mas parece que deu, e muito dessas consequências se deve ao trabalho de Sabrina.

“Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos!”

Foi seu último grito, uma frase que guarda a esperança, a constatação de que, do lodo, emerge a flor de lótus.

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Veja agora um vídeo de Gabriel Baum, divulgado no ano passado, em que ele também se apresenta como ativista pela luta contra abusos e homenageia a mãe.

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