O teatro que foi a cartaz na audiência em Curitiba. Por Brenno Tardelli

Atualizado em 15 de setembro de 2017 às 10:24
Manifestante estende faixa “se você quer Lula na Cadeia, buzine” em apoio a Sergio Moro, nesta quarta feira, 13, em Curitiba. Foto: Heuler Andrey/AFP

Analisar um caso dentro da Operação Lava Jato exige casca nas mãos, pois já são anos dando murros em ponta de faca. Vale dizer que todo debate que se propõe a analisar o caso de forma imparcial para leitores e leitoras pressupõe, muitas vezes por má-fé, que o caso em questão será julgado da forma que se espera do bom funcionamento da máquina estatal, no caso o Poder Judiciário. Procurador acusa, defesa defende, juiz julga e cada um faz seu papel quando as instituições funcionam normalmente. Infelizmente, como muito se sabe e se percebe, há muito tempo não é assim na Operação Lava Jato.

No caso que levou o ex-presidente Lula a Curitiba nessa semana, a militância petista e milhares de policiais fortemente armados – com altíssimo custo público de deslocamento, encargos extras e uso de equipamentos – para os arredores do Fórum Federal, não foi diferente. O caso, como se verá, cumpre o script judicial farsesco que é aplaudido por muitas pessoas informadas sobre todos os abusos, mas que nada falam ou protestam contra isso, seja por apatia, seja por conveniência política e social, seja por ignorância.

Vamos ao caso no que se refere à acusação ao ex-presidente*.

A acusação

Segundo o Ministério Público Federal, Lula teria sido pago com dois imóveis a título de corrupção – no sentido moral e jurídico do termo -, em razão de oito contratos firmados entre a Petrobrás e a construtora Odebrecht. Um imóvel seria na rua Haberbeck Brandão, em São Paulo, onde supostamente viria a ser um dia a sede do próprio Instituto Lula. Já o outro imóvel seria o apartamento vizinho ao imóvel onde o ex-presidente mora em São Bernardo do Campo.

A acusação, contudo, apontou dois imóveis que são de posse e propriedade de outras pessoas. O apartamento está registrado no nome de Glaucos desde 2001 e o terreno – que nunca virou sede de Instituto nenhum, ora pois – esteve registrado no nome da construtora DAG e já foi, inclusive, passado para um terceiro. Atualmente, tal imóvel encontra-se à venda.

Do ponto jurídico, eis uma falha monumental acusatória: A ideia de que corrupção pode ser fundada em imóvel registrado em nome de outra pessoa física ou jurídica. Pessoas que não lidam com processo, acusação, defesa e prova podem até ter dificuldade para entender, mas quem se propõe a atuar na área jurídica e penal com seriedade sabe que posse e propriedade são conceitos sedimentados há séculos e que, na lógica jurídica, só é dono quem registra. Para tentar superar esse beco sem saída, a Lava Jato se apoia em um suposto conceito de propriedade de fato, algo que aos ouvidos de qualquer civilista soa capenga.

Aplicado ao caso concreto, a hipótese acusatória fica ainda mais abalada, uma vez que no caso do imóvel pretensamente estabelecido a Lula só foi visitado por ele uma única vez (não havendo posse e nem propriedade, portanto), como também foi avaliado e rejeitado pela diretoria do partido. Já sobre Glaucos da Costamarques, proprietário do apartamento vizinho de Lula e apontado tanto como uma espécie de laranja, quando se olha o rastreamento do fluxo de seu dinheiro a compra do apartamento é anterior ao que teria recebido como propina para compra do imóvel. Essa propina seria referente à cessão de direitos do terreno pretensamente destinado, na visão acusatória, ao ex-presidente. Em outras palavras, o Ministério Público não conseguiu fechar a conta.

A competência

A supercompetência da Lava Jato é um importantíssimo tema, mas que não recebe a atenção da mídia brasileira, e, consequentemente, não é de conhecimento do público em geral. Resumindo o debate: diversos juristas contestam o tamanho da abrangência da competência de Moro, que julga processos de todo o país e os mais variados contextos de acusação de corrupção.

A questão ganhou contornos ainda mais complexos quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar essa questão, afirmou que Moro somente poderia julgar casos de corrupção que tenha relação com a Petrobrás. Por isso, quando o magistrado e a força tarefa tem a intenção de julgar algo, basta que se levante uma argumentação de que o caso desejado tem conexão com a corrupção específica na companhia petrolífera brasileira. Nesses casos, o discurso da acusação e do magistrado é que estamos diante do “maior esquema de corrupção da história”.

A história, por funcionar por muito tempo, hoje é cristalizada sem grandes questionamentos que seriam necessários. Afinal, do ponto de vista jurídico, dizer o jargão “maior esquema de corrupção da história” não diz quem, onde, por qual razão, quem pagou, quem recebeu, qual contrato da Petrobrás foi afetado, de que forma Lula interferiu e como foi a relevância para o resultado e demais explicações que seriam indispensáveis quando se acusa alguma pessoa sob a lógica processual penal brasileira. Acusação de tribunal deveria ser muito mais refinada e comprovada do que uma acusação de redes sociais.

Voltando, o debate é importante porque caso o MPF não responda todas essas questões – como, de fato, não respondeu – significa dizer que não foi comprovada a participação da Petrobrás e, logo, a competência para julgar não é de Sérgio Moro. Soma-se a isso o fato de Moro nítida e declaradamente ter uma disposição hercúlea para condenar, despindo-se completamente de qualquer remota possibilidade imparcial, como alertado no primeiro parágrafo desse artigo.

Na audiência, nenhuma pergunta foi feita sobre os 8 contratos da Petrobrás que justificariam a competência para a Lava Jato em Curitiba e que, na realidade, é a base da denúncia.

A audiência

Em meio a esse contexto, aconteceu uma audiência. Juiz e acusação sentaram-se em seus lugares com as formalidades e protocolos próprios de um ambiente jurídico, o qual cobre de verniz institucional um grande teatro com propósitos persecutórios.

O verniz obriga o magistrado a fazer perguntas sem que esse contexto seja apresentado – o que traz, é claro, uma responsabilidade enorme dos veículos de mídia, que são em geral porta-vozes, meros reprodutores, ignorantes ou indiferentes quanto ao circo de Curitiba. Para quem assiste, fica a impressão de que algo sério está sendo perguntado ali, quando, na verdade, é só a fogueira que está sendo acesa.

Não à toa, depois do protocolo cumprido, de respostas dadas por um réu – o qual, tem suas contradições em vida, bem como desperta amor, ódio e ceticismo – a um juiz indisposto que irá distorcer o que foi dito, a audiência descamba para troca de farpas, como se fosse bate-boca de bar. Lula, enquanto cidadão réu de um processo injusto e político hábil, posiciona-se como mártir da democracia, um papel no mínimo exagerado, mas de outro lado compreensível porque a Operação Lava Jato ultrapassa qualquer limite de seriedade e confere toda a oportunidade para esse script.

Moro, de outro lado, aos poucos vai constrangendo cada vez seus fãs e a figura de herói se deteriora na velocidade em que mergulha nas contradições e incoerências morais que lhe são inevitáveis depois de tanto tempo perpetrando medidas abusivas. Seu lugar político tem cada vez mais decepcionado pessoas de convicções conservadoras esclarecidas, que não se confundem com séquitos de apoiadores de grupos de ultradireita e afins.

Quanto ao Ministério Público Federal, que vive uma crise institucional com seu chefe maior Rodrigo Janot em franca decadência e deterioração, não há mais na mesma intensidade a virulência de seus intocáveis contra tudo e todas. Quem lembra daquele profeta na coletiva do famigerado Power Point, decepciona-se ao vê-lo atualmente. Minha hipótese é que o tempo foi o senhor da razão, que cobra a conta, enverga e quebra quem vem há anos surfando no arbítrio. Profissionais decaíram no seu nível e a tendência é que se rebaixem ainda mais.

Por fim, a audiência também marca uma disputa nítida entre Moro e a Defesa do ex-presidente, ao passo que o magistrado tomou diversas medidas arbitrárias sobre as liberdades dos defensores, como, por exemplo, o grampo ilegal determinado contra pelo Juiz Federal contra todo escritório de advocacia capiteaneado neste processo por Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Zanin Martins. Soma-se a isso a ofensiva de Moro contra Roberto Teixeira Martins, advogado que foi denunciado no presente caso e que é fundador do Teixeira Martins Advogado. A relevância da série de abusos do magistrado contra a defesa decorre da percepção de que não se trata, no caso, de uma disputa acusação x defesa (como haveria de ser em um processo regular), mas sim de uma disputa juiz x defesa, o que torna a audiência ainda mais farsesca.

Brenno Tardelli é diretor de redação no Justificando.

Texto originalmente publicado no site Justificando.