
A entrevista concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso à jornalista Mônica Bergamo, publicada ontem na Folha de S.Paulo, é, em tudo, ternura e delicadeza. Cada pergunta, um desvelar amoroso; cada resposta, um afago; cada observação, um chazinho de camomila com mel de jataí; cada recordação, um algodão-doce derretendo lentamente na boca. Nada mais apropriado do que descrevê-la como a coisa mais fofa do mundo. Entrevista-fofucha. Talvez esteja aí o problema. Porque, entre tantos diminutivos açucarados, a aura de candura do ministro revela menos inocência do que se imagina, e bem mais cálculo do que a aparência quer sugerir.
A entrevista, tomada em sua superfície, parece a materialização de um macíssimo panda de pelúcia. Mas pandas, como se sabe, têm garras, ainda que escondidas sob a maciez do pelo. O ministro, embriagado pela doçura de seu próprio discurso, deixou escapar declarações que podem expor — “podem” é o mais apropriado nesse caso — com nitidez aquilo que sempre procura ocultar: sua habilidade de transformar responsabilidades históricas em pequenas anedotas de bastidor, como quem, entre goles de chá, recorda distraidamente um equívoco juvenil.
A lágrima quase me escapou quando o eminente togado afirmou que “a vida de um juiz que procura exercer seu ofício com integridade e sem partidarismo exige decisões que são pessoalmente difíceis”. O drama íntimo, o fardo moral, o sofrimento secreto. Quem não se compadeceria? Eu me compadeço; sou só compaixão nesses casos. Verdades sinceras me desmontam por dentro.
Contudo, minha memória é implacável. E, nesse delicado caso, ela não falha. Em 2018, Barroso deu um voto que pavimentou a prisão de Lula, decisão que alterou o rumo político do país. Indagado pela jornalista sobre um possível arrependimento, respondeu que não havia responsabilidade sua, mas da “maioria”, que incluía Alexandre de Moraes. Falou como se o seu próprio voto tivesse sido um detalhe lateral, quase uma vírgula num texto alheio. É como se dissesse: “Eu apenas estive presente na cena do crime, Excelência, mas não puxei o gatilho”.
Há, porém, outra memória a me marretar. O ministro não mencionou que, em um dos processos mais significativos da história do STF, relatou contrariamente à decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU, que determinava o direito de Lula concorrer em 2018. Foi ele quem, com sua retórica elegante e vazia, retirou o nome do ex-presidente da cédula, abrindo caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro, a quem descreveu como um homem “muito simpático”. Simpático — o termo, aqui, é quase um insulto disfarçado de gentileza. O resultado todos conhecemos: centenas de milhares de mortes evitáveis na pandemia, uma tentativa de golpe e um rebaixamento ético e moral que ainda nos assombra. Mas nada disso mereceu sequer uma nota de rodapé na entrevista.

Quando a entrevista escorregou para a Lava Jato, a ternura se superou. Barroso admitiu, com voz de menino enganado, que talvez tenha sido manipulado pela quadrilha de Curitiba. “Havia uma obsessão pelo ex-presidente Lula”, reconheceu. É comovente. Quase vemos o ursinho caramelo abraçado pelo lobo mau. Mas, nesse mesmo cenário, é impossível esquecer que o ministro votou contra o reconhecimento da parcialidade de Moro, sustentando que, após a declaração de incompetência da Vara de Curitiba, o habeas corpus havia perdido objeto. Mais: classificou como ilícitas as mensagens que revelavam a promiscuidade entre juiz e procuradores, negando-lhes valor probatório. Essa forma elegante de encobrir a fraude judicial curitibana, que o próprio STF já desnudara, parece sintoma de uma síndrome de Estocolmo togada: o sequestrado que insiste em proteger seus algozes.
Até 2024, a síndrome continuava operando na mente e no coração macio do nosso ministro. No julgamento da juíza Gabriela Hardt, sucessora de Moro, acusada de irregularidades em acordos bilionários, Barroso voltou à cena para proteger o espólio lavajatista. Votou contra seu afastamento, pediu vista, retardou o processo e tentou arquivar o caso. Foi derrotado pela maioria do CNJ, que decidiu abrir processo disciplinar. Mas, na prática, ofereceu guarida institucional a quem autorizara a entrega de mais de dois bilhões de reais para uma tal “Fundação Lava Jato”, recém-criada pelos corruptos criminosos lavajatistas.
Que fique claro. Não, ele não é cúmplice; apenas vítima enganada. Não é avalista da Lava Jato; apenas alguém que acreditou em histórias mal contadas.
Mas Barroso falou também de futuro, e a sabedoria indica que é melhor mirar o avenir do que apenas olhar o passado. Sempre.
Sobre sua saída do STF, é claro que, tratando-se de figura tão cândida, ninguém poderia supor que, ao falar em deixar o Supremo, discorreria sobre desejos passados, soterrados pela morte de Tereza, sua penúltima esposa, que não são necessariamente desejos verdadeiros em seu atual momento conjugal, mas que, dependendo do que lhe seja ofertado como futuro, talvez… sim, é isso mesmo, tão confuso e novelesco quanto um novelo, onde as pontas estão escondidas bem no centro. Ao ser aventada a hipótese de uma embaixada, como se estivesse insinuando uma troca singela — “dê-me um palácio renascentista em Roma ou Paris, e eu entrego a toga com laço de fita” — apressou-se em desfazer a dúvida. Faltou, como confirmação, um seco “Não, não é disso que se trata”. Tanto que, perguntado se já decidiu sair, respondeu como quem hesita entre chá de jasmim ou hortelã: “sair é uma possibilidade, mas não uma certeza”. E, sobre a embaixada, desfez o rumor com a candura de sempre: “essa hipótese nunca foi aventada”.
Nesse ponto, é importante afirmar que não seria justo confundir Barroso com um hábil prestidigitador que, com uma mão, acena com a doçura da inocência e, com a outra, manipula os fios invisíveis que sustentam a farsa. Não é estrategista, apenas modesto servidor público que se emociona diante de cenas de solidariedade.
E, afinal, como imaginar tamanha dissimulação em alguém que se comove em público, quase às lágrimas, ao narrar encontros com refugiados venezuelanos? Que razão haveria para duvidar da pureza de intenções de um senhor que se descreve não como protagonista, mas apenas como uma gota singela no oceano generoso do Brasil? Um personagem assim, movido pela emoção e pelo altruísmo, não pode jamais ser confundido com o arquiteto de decisões que marcaram a história recente com sombras tão pesadas.
“Eu fiquei emotivo três vezes pelo mesmo episódio, quando relatei que fui a Roraima, neste mês, visitar a Operação Acolhida [de imigrantes venezuelanos]. Lá, um senhor de 80 anos, que já deveria estar repousando na vida, me disse ‘eu queria agradecer a vocês’ [por ser bem recebido no Brasil]. Me emocionou ver as pessoas naquela condição, e ver esse país bonito que a gente tem, que faz essas coisas, que acolhe as pessoas [se emociona novamente].”
E assim, entre lágrimas públicas e votos privados, nosso ursinho de toga segue seu caminho: macio por fora, fofo na periferia, com garras curtas e aparadas, bem escondidas no centro de seu fofo novelo-existência.