O vendedor de passados

Atualizado em 26 de maio de 2015 às 10:26

o vendedor de passados

Livremente inspirado no livro e filme “O Vendedor de Passados”, com Lázaro Ramos e Alinne Moraes, ora em cartaz.

 

Vicente estava na montagem de algumas fotos quando percebeu a chamada do porteiro eletrônico. Interromper o trabalho, que maçada!, pensou, mas foi atender. Pelo visor, viu um homem sem rosto, somente um terno Armani e gravata Hermés. Coisa normal. Ele se identificou como sendo da família (disse o nome), e necessitava de um trabalho  de reconstrução do passado não de uma pessoa em particular (mesmo porque, depois da morte do patriarca, ninguém mais tinha nome próprio), mas de uma empresa. Vicente nunca fizera isso antes, mas abriu o portão. Diante dele, o terno Armani explicou:

– Precisamos de provas de que lutamos contra a ditadura. Já produzimos muitas, mas elas caíram na Internet e viraram memes. Puro escárnio.

– Mas o senhor há de convir, de fato sua empresa nunca lutou contra a ditadura; aliás, muito se beneficiou dela, e a apoiou abertamente durante todos seus 21 anos de vigência.

– Sim, claro, o senhor sabe, muita gente sabe. Mas é hora de mudar. Sabemos que não adianta ocultar provas, mas necessitamos de novo material para divulgação. Coisa mais profissional, pois a turma que temos a trabalhar conosco, francamente, não serve para muita coisa…

– Percebo – respondeu Vicente, se lembrando de todos os colunistas do jornal, reconhecidos pela incompetência, falta de juízo, aversão aos fatos e sabujice vergonhosa, entre outras qualidades.

– Sim, o senhor é esperto. Depois, fica conosco. Nosso conglomerado é forte, e temos apoios até em nossa concorrência.

– Concorrência? – questionou ironicamente Vicente; seu interlocutor riu, apertou sua mão muito levemente (a limpou em um lenço logo em seguida, até discretamente, mas Vicente notou, com seus olhos de lince negro), e se foi, não sem antes deixar uma mala cheia de dólares, em blocos estranhamente selados pelo Banco Central brasileiro.

Não demorou muito para a campainha soar novamente e, desta vez, Vicente nem precisou perguntar quem era, tal o brilho que emanava da figura de rosto encanecido, mas brutalmente jovem.

– Obviamente – disse-lhe o brilho intenso, e Vicente percebeu que ele deveria saber de antemão o que se tratava. Mesmo assim abriu o portão, e o brilho da figura tomou conta de seu escritório. Era um brilho frio, como da neve sob o sol.

– Quando o senhor pode me entregar o trabalho?

Vicente teve que adivinhar que se tratava da reconstrução da história dos 8 anos de governo do brilhante interlocutor; 8 anos de muita empulhação, carestia, crise, falência, mascarados em uma absurda paridade monetária a ensejar importações excessivas e quebradeira, que abriram caminho para as privatizações e desregulamentações, enquanto os salários caíam e os direitos trabalhistas eram solapados, entre outros fatos extraordinários.

– Só não entendo, caro Príncipe, porque seria eu, tão humilde trabalhador, a efetivar essa transformação, visto que o senhor, tão brilhante, bem poderia operá-la sozinho.

O Príncipe riu, e Vicente logo percebeu – “Claro”, pensou, “ele sabe que eu sei que todos os livros que são a ele atribuídos foram construídos com generosa e bem paga contribuição alheia, e que a um intelectual de verdade basta parecer intelectual, e nunca sujar as mãos com a escrita e se desgastar com leituras e pesquisas.

Então riu também, e o senhor reluzente foi-se sem apertar as mãos de Vicente, até porque este último não saberia identificar onde estaria qualquer mão do Príncipe, ocultas ambas pelo aspecto intenso de sua brancura, apesar do pé ser visível e algo escuro – um pé na cozinha. à mesa, um cheque polpudo, não do Príncipe, mas de um certo Instituto.

Não conseguiu voltar ao trabalho como pretendia, pois logo surgiu mais uma pessoa com original proposta de trabalho. Desta vez era um tipo meio ordinário que lhe bateu à porta, vestido com uma camisa negra contendo um logotipo de uma organização de gênero fascista, que, assim que entrou, colocou em suas mãos dois grossos maços de notas de euro.

– O caso é o seguinte, meu: a gente precisa de um presente novo. Todo dia de um presente novo, e cada dia pior que o anterior, tá sabendo?

– Como assim?

– Pô, meu, não percebe? Acontece o que tiver que acontecer no mundo, a gente precisa de uma versão a fim com a nossa necessidade, percebeu?

– Mas isso eu não preciso fazer; fazem isso o tempo inteiro em todos os jornais, revistas, canais de televisão…

– Tô sabendo, meu, tô sabendo, mas a turma é fraca. A gente pode até usar os canais, tá sabendo, pra divulgação, mas essa turma lá de dentro é fraca. Eles publicam uma coisa aqui, e logo um monte de gente suja, dessa que escreve em blogs, tá ligado, cai de pau em cima, desmontando a coisa toda, gente paga pelo governo, tá sabendo?

– Tô, tô sabendo.

– Então é isso, mané: a gente tá com tudo, mas precisa de um apoio, tá ligado, meu? De uma fonte independente.

Vicente pensou em dizer que, se independente fosse, não faria o que ele estava a pedir, como tampouco se sujeitaria a tecer loas às últimas ações governamentais, mas achou inútil explicar. Pensou em se desvencilhar do trabalho alegando a sobrecarga representada pelas duas últimas encomendas, mas teve tempo de refletir e perceber, tá ligado, que seria na verdade como um trabalho só, que poderia entregar, adaptações de praxe, aos três clientes, que, também, na verdade, era apenas um.

– A gente tem que acabar com essa metralhada corrupta, tá entendendo? Se precisar de mais grana, não tem problema. Só pedimos que não consulte a turma que trabalha pra… digo com… quer dizer, para essa turma que tá aí descendo o sarrafo no governo, que eles, meu, são muito fracos, e nós queremos outra coisa, tá ligado?

– Uma coisa mais independente – concluiu Vicente.

– Bem que me falaram que tu era o cara, e tu é o cara mesmo! – exclamou o jovem cliente, que sorriu e partiu repentinamente. “Certamente” – pensou Vicente – “para não ter que apertar minhas mãos”.

Coça um pouco seu cavanhaque e finge se olhar no espelho. Sabe de antemão que não verá nada, mas o ímpeto de um criador não recua quando a invenção, até de si mesmo, é regra número um de sobrevivência.