“Hummm. Provavelmente ‘Maybe I’m amazed’ ”, diz, para mim, o senhor de 67 anos a minha frente num bar em Borough High Street, em Londres. Ele tem todas as rugas que o tempo traz, e o cabelo só não está branco porque ele pinta, mas é o tipo do homem, desempenado, inteligente, ativo sem ser hiper, para o qual você olha e diz: “Quero envelhecer como esse cara. Definitivamente”. Não pelo dinheiro, que é muito, não pela fama, maior ainda, não pela condição de imortal conquistada com sua prodigiosa capacidade de escrever músicas e cantá-las, ora com a voz doce como um sonho de valsa, ora com gritos com os decibéis das vociferações de mulher jovem em TPM. Também não pela habilidade em tocar e bem qualquer instrumento, baixo, guitarra, bateria, piano e, ultimamente, o ukulele, uma espécie de cavaquinho do folclore havaiano. Você quer ser como ele aos 67 porque ele é tudo que é, um homem idolatrado globalmente, um raríssimo caso de lenda reconhecida em vida, e ainda assim parece ser seu tio do interior, jovial e divertido, aquele cara por quem você enfrenta qualquer estrada para ter o prazer de conversar num bar sem hora marcada para tomar a saideira.
Bem diante de meus olhos, a menos de 10 metros de mim, paletó e calça cinza, camisa branca, sem gravata, os pés acomodados em tênis confortáveis, respondendo a uma pergunta minha está James Paul McCartney, que eliminou, ainda garoto em Liverpool, o primeiro nome na vida artística. Estamos numa sala escassamente iluminada do bar em que Paul McCartney, sob as vistas admiradas de jornalistas fãs de todo o mundo, está lançando Good evening New York City (Universal), DVD e CD com as 33 músicas de um concerto feito neste ano na inauguração do Citi Field, um estádio de beisebol nova-iorquino. O Citi Field foi construído onde, antes, se erguia um nome vital na história dos Beatles e, mais ainda, do rock: o lendário Shea Stadium, onde o Fab Four se apresentou em 1965 para uma multidão alucinada que gritava tanto que eles não conseguiam ouvir o que tocavam e cantavam, como lembrou Paul na semana passada no bar de Borough High Street. Foi o primeiro concerto de rock num estádio, e mais uma entre tantas inovações trazidas pelos meninos de Liverpool no curto e épico período em que estiveram juntos como banda, entre o comecinho dos anos 60 e 1970.
Ali no bar, Paul está respondendo a perguntas submetidas a uma seleção severa pelos organizadores do encontro. São dezenas de jornalistas, todos ávidos por ver Paul McCartney e, se Deus ajudar, fazer-lhe uma pergunta. Só que o tempo é limitado, “não se estica como elástico”, para lembrar a grande frase de um jornalista com quem tive a honra de trabalhar. A organização pediu aos jornalistas credenciados para o lançamento que fizessem duas perguntas e as mandassem para uma filtragem da qual Paul estaria ausente. Escrevi duas, mas depois desisti da primeira, relativa ao sonho durante o qual compôs “Yesterday”, e fiquei numa. Se tivesse de escolher apenas uma música pela qual ser reconhecido no futuro, qual seria e por quê.
Era exatamente a essa pergunta que ele respondia quando citou “Maybe I’m amazed”, balada agridoce dos primeiros tempos pós-Beatles. Sim, minha questão tinha sido escolhida, não para orgulho meu, um sentimento perigoso, e sim para alegria. Suspeitei quando vi que havia uma poltrona reservada para mim ali no gargarejo, sob o nome errado de Paulo Noguira. Surpresa para mim a escolha de Paul. Minha maior aposta era “Hey Jude”, por ela ser o que é e por algo que só os iniciados em Beatles sabem. Quando Paul a mostrou a John Lennon, seu grande parceiro, tinha dúvidas em relação à letra. Incomodava-o especificamente um trecho, por trazer à letra uma repetição de palavras: The movement you need is on your shoulders. O movimento de que você precisa está em seus ombros, ou seja, com você e com mais ninguém. Ao ouvir esse verso, Lennon imediatamente arregalou os olhos. Notou, na hora, a sabedoria intuitiva contida ali e cumprimentou Paul. “Sempre que toco ‘Hey Jude’, lembro de John nesse trecho”, diz Paul.
Por que “Maybe I’m amazed”, bonita mas secundária, uma declaração de amor a Linda McCartney, sua primeira mulher, morta de câncer em 1998? Para entender a resposta, é preciso voltar a uma questão anterior a minha, formulada por uma jornalista italiana. Paul acrescentou nos últimos tempos a seu repertório canções de outros beatles, como “Something”, de George Harrison, e “A day in the life”, de John. Antes, só tocava músicas que ele próprio tinha composto, uma imensidão melódica majestosa que inclui faixas como “Lady Madonna”, “Let it be”, “The long and winding road”, “Yesterday”, “Penny Lane” e “Eleanor Rigby”, para ficar apenas em algumas. Isso considerado, a italiana perguntou a Paul que música sua ele gostaria que John cantasse, uma questão fascinante para nós, beatlemaníacos. Paul reconheceu a qualidade da pergunta e, depois de alguns momentos de reflexão com seus tiques célebres de cabeça, elegeu “Maybe I’m amazed”. De fato, cabe bem em John, sobretudo na parte gritada, algo em que ele era imbatível, como mostram “Mother” e “Yer blues”.
Minha pergunta veio a seguir, e a resposta foi facilitada pela questão anterior. “ ‘Maybe I’m amazed’ ”, Paul disse para mim. “Porque seria cantada pelo John.” Pensamento rápido e humor fácil. Paul seria um grande comediante se optasse por outras atividades no palco, e se destacaria com certeza também como entrevistador se não tivesse gênio em tal quantidade que não dá para imaginá-lo em outra posição que não a de entrevistado. Um jornalista alemão pergunta a Paul que canção dos Beatles ele recomendaria para a iniciação musical da filha de 7 anos, que está aprendendo a tocar violão. “Back in the USSR”, ele responde. Mas alguém pondera que é complicado explicar a letra para uma garotinha. A União Soviética, a URSS, já foi para o crematório há 20 anos. Falar de Lênin e Lennon ao mesmo tempo para uma criança? “Sua filha vai gostar dessa”, insiste, mesmo assim, Paul. “A minha gosta.” Paul teve Beatrice, hoje com 6 anos, com Heather, uma ex-modelo de quem se separou barulhentamente num dos divórcios mais caros e fofocados do mundo.
Paul está iniciando uma curta turnê europeia. Começa em Hamburgo, onde antes de estourarem para o mundo os Beatles fizeram apresentações históricas em bares suspeitos, e termina em Londres, perto do Natal. Medo de cadeiras vazias, por acaso? Hummm. Bom ponto. “Lembro do Elvis cantando em Las Vegas para 50 pessoas, e isso é triste. Penso nisso, claro, mas os ingressos para nossos shows se esgotaram em seis minutos assim que foram postos à venda na internet.” Como se vê em Good evening New York City, James Paul McCartney toca as músicas que as pessoas, de todas as idades, estão doidas para ouvir.
Ele mesmo escolhe, é claro, as músicas que serão tocadas. São muitas, dezenas, e isso evita o tédio de ter de cantar sempre as mesmas coisas, como aconteceu com Frank Sinatra depois de gordo, quando abominava cantar “Strangers in the night”, o pedido infalível de toda plateia diante da qual ele se apresentasse. Eu não poderia encerrar este texto sem dizer as palavras que não pude evitar, como um garoto, antes de fazer minha pergunta a Paul, ali na luz fosca do barzinho de Borough High Street: “Muito obrigado, James Paul McCartney, por tanta coisa boa que você nos trouxe”.
Este texto foi publicado em 29 de novembro de 2009, na revista Época.
Saudades infinitas