Ofensa a fiscal da Vigilância no Rio revela insegurança dos diplomados. Por Moisés Mendes

Atualizado em 7 de julho de 2020 às 9:15
Nivea Del Maestro e Leonardo Barros

Se as empresas forem demitir todos os racistas, os negacionistas, os que desafiam o bom senso, os que ignoram o sentimento de coletividade – se todos esses fossem mandados embora, algo ao redor de 15% da força de trabalho seria dispensada.

É esse o contingente dos alinhados com Bolsonaro, segundo as pesquisas. E se, no lugar deles, as empresas contratassem gente hoje sem emprego, mas que preza pelo sentimento de solidariedade e de respeito ao outro – e mais ainda em meio a uma pandemia –, o mundo talvez fosse melhor.

O desemprego seria um fenômeno que atingiria quase só fomentadores do ódio e do preconceito, que poderiam se candidatar às vagas para milicianos de Bolsonaro.

Mas o mundo não funciona assim, e só os muito azarados perdem o emprego. Essa moça aí da foto, que pisoteou num servidor público, perdeu o dela.

É aquela que agride o agente de saúde em serviço nos bares do Rio, ao dizer que não iria respeitar a orientação para que evitasse aglomeração e para que usasse máscara.

E que depois deprecia ainda mais o servidor, ao dizer que o sustenta. E, por fim, tenta confrontá-lo com a informação de que o marido ou namorado ou conhecido ao seu lado não é apenas um cidadão, mas um “engenheiro civil formado”.

É uma sequência de bobagens ditas pela mulher, enquanto o homem que a acompanha mostra que está filmando o servidor, como se quisessem, além de humilhá-lo, flagrá-lo em algum deslize.

A mulher que acha pouco, acha banal demais ser apenas cidadão, foi demitida da Taesa, uma empresa de energia do Rio. Não se sabe se ela também é formada, ou se o carteiraço foi dado na carona do sujeito que estava ao seu lado.

E aí está toda a exposição da fragilidade da moça, com mais um exemplo da síndrome que ataca o brasileiro. É a síndrome do diploma, da titulação, do eu tenho e sei mais.

A ampliação da possibilidade de acesso à universidade, nos governos de Lula e Dilma a partir de 2003, fragilizou a autoestima de quem havia chegado ou estava chegando a um curso superior.

A universidade continuava sendo seletiva, mas bem menos do que no tempo em que era essencialmente branca, dos ricos e da classe média.

Com aumento da competição propiciada pelas cotas, pelo ProUni e pelos novos institutos federais, o desafio passou a ser mais aprendizado e titulação. As universidades ampliaram acessos a mestrados e doutorados, porque é assim no mundo todo, inclusive como negócio.

Dizer que tem uma graduação hoje pode significar pouco como exibicionismo e ostentação de prestígio, sabedoria e poder econômico.

A Síndrome Decotelli, com muitos exemplos no governo, é o mal do momento. Todos querem ter doutorado, mas poucos têm. Muitos querem ter pós-doutorado, o que a minoria das minorias consegue.

Por isso a frase da moça sobre o marido ou namorado ‘formado’, usada como carteiraço, chega com décadas de atraso.

Os governos de esquerda propiciaram acesso a diplomas que são expressão de ascensão social. Paras negros, pardos, pobres, índios.

Mas a moça está defasada na sua insegurança, ao exaltar a titulação do acompanhante engenheiro formado. Formação não pode ser arma de humilhação.

Teria sentido, para ostentar e agredir, se ela estivesse acompanhada por um engenheiro com pós-doutorado. É a ostentação da moda hoje no governo da extrema direita.

A agressão ao fiscal da prefeitura é por isso mesmo uma chinelagem. Ela poderia ter dito, como Salles, Damares e Decotelli fizeram, que o amigo tinha um diploma que poucos têm. Mas não disse. Não mentiu.

Por isso deve ser chamada, advertida para o erro e conduzida a um reaprendizado, como fazem com motoristas infratores.

Que fique sabendo que um diploma é, sim, um símbolo concreto de afirmação e crescimento profissional e social. Já é muito. Não precisa ser mais do que isso.

Que não exagere, principalmente se o ‘formado’ apresentado como parte de uma elite tiver recebido, como foi mostrado pelo Globo, o auxílio emergencial de R$ 600.

Na próxima vez, se quiser humilhar, que a moça arranje um jeito de dizer: esse engenheiro ao meu lado não é apenas um cidadão formado, é um pós-cidadão com pós-doutorado em Harvard. Que tenha mais pós-pretensão.