
Originalmente publicado em O Cafezinho
As análises vieram rápidas e quase unânimes. Na direita moderada e na esquerda, praticamente todo mundo entendeu que as investidas grotescas de Donald Trump ao Brasil criaram uma onda fortíssima de sentimento patriótico, de defesa do governo Lula e de profunda irritação com a família Bolsonaro.
Tanto é que vários representantes bolsonaristas começaram a gritar nas redes sociais: “a culpa é do Lula, a culpa é do Lula”. Mas essa tentativa apenas refletia o desespero.
Outro exemplo. O jornalista Paulo Figueiredo, neto do ditador João Figueiredo, residente nos Estados Unidos, tem sido um dos principais articuladores, junto com o deputado Eduardo Bolsonaro, para jogar Trump contra o governo Lula e contra o Brasil. Quando percebeu, no entanto, as reações negativas crescentes à decisão de Trump, e que isso poderia se voltar contra o próprio bolsonarismo, Figueiredo tentou mudar o discurso: “ah não, o foco não é o Lula, a culpa é do Moraes”.
Alguns nomes ligados ao bolsonarismo, como o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, não conseguiram se descolar de Bolsonaro, e decidiram se alinhar com o presidente americano, Donald Trump, contra seu próprio governo e seu próprio país. Resultado: foram destroçados nas redes sociais.
Um dado curioso é que o próprio Trump enfrentou problemas nas redes, com milhares de brasileiros invadindo suas contas em redes sociais para criticá-lo e defender a soberania brasileira.
As mentiras da carta de Trump
Mas o que exatamente motivou essa reação tão contundente da sociedade brasileira? A resposta está na própria carta enviada por Donald Trump ao presidente Lula – um documento que parece escrito por alguém intelectualmente incapaz. O texto é cheio de contradições e mentiras explícitas.
A primeira e mais gritante mentira é a reclamação de Trump sobre um suposto déficit comercial que os Estados Unidos teriam com o Brasil. O presidente americano afirma textualmente que “o Brasil tem se beneficiado de práticas comerciais desleais” e reclama de um suposto “déficit comercial significativo” dos EUA com o Brasil. Isso simplesmente não existe.
Trump também escreve na carta que “o Brasil precisa tratar os Estados Unidos de forma mais justa no comércio”, ignorando completamente que o Brasil historicamente compra mais produtos americanos do que vende. A carta ainda contém interferências grotescas em assuntos internos brasileiros, com Trump cobrando explicações sobre processos judiciais que fogem completamente da alçada do governo Lula.
Os números reais: superávit americano de US$ 25 bilhões
Para entender a dimensão da mentira de Trump, é preciso olhar os dados históricos da relação comercial entre os dois países. Desde 1998, o Brasil teve déficit comercial com os Estados Unidos em 18 dos 28 anos analisados.

O maior déficit brasileiro de bens (ou produtos) ocorreu em 2022, com US$ 12,6 bilhões, enquanto o maior superávit foi registrado em 2005, com US$ 10,2 bilhões. Em 2024, o Brasil teve um pequeno superávit de US$ 1,1 bilhão, mas em 2025 já retornou ao déficit de US$ 1,7 bilhão. Nos últimos 10 anos, o Brasil acumulou um déficit comercial de bens de US$ 48 bilhões com os Estados Unidos.
Quando consideramos o setor de serviços, a situação fica ainda mais clara em favor dos EUA. Entre 2010 e 2024, segundo dados do Banco Central do Brasil, o comércio total de bens e serviços entre Brasil e Estados Unidos movimentou US$ 1,24 trilhão – equivalente a 4,28% do PIB americano de 2024. Para se ter ideia da magnitude desse valor, o orçamento militar dos EUA em 2024 foi de US$ 841,4 bilhões.
Nesse período de 15 anos, o Brasil exportou US$ 562 bilhões em bens e serviços e importou US$ 687 bilhões, resultando em um superávit americano acumulado de US$ 125 bilhões! Isso significa que os EUA tem muito a perder caso decidam realmente entrar numa guerra comercial contra o Brasil.
Apenas no setor de serviços, os Estados Unidos acumularam um superávit de US$ 40,5 bilhões com o Brasil entre 2010 e 2024. Em 2024, o superávit americano em serviços foi de US$ 8,9 bilhões.

Café brasileiro: 23% das importações americanas
O café representa um dos setores mais estratégicos na relação comercial Brasil-Estados Unidos. Nos últimos 12 meses (junho 2024 a maio 2025), segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, o Brasil exportou US$ 2,57 bilhões em café para os Estados Unidos. Do lado norte-americano, segundo dados do Departamento de Estatística do governo deles (até maio 2025), o café brasileiro representa 23,3% de todas as importações de café, consolidando o Brasil como o principal fornecedor.

O mercado de café nos Estados Unidos movimenta US$ 343,2 bilhões. Como os Estados Unidos produzem menos de 1% de todo o café consumido domesticamente, o país depende fundamentalmente das importações. Os principais fornecedores são: Brasil, Colômbia, Vietnã e Guatemala. Nenhum país tem condição de aumentar sua oferta para substituir o café brasileiro.
Minério de ferro: Brasil domina com 62% das importações
O minério de ferro representa outro setor crucial. Nos últimos 12 meses (até maio 2025), segundo dados do Departamento de Estatística do governo norte-americano, o Brasil manteve uma participação média de 62,4% nas importações de minério de ferro dos Estados Unidos.

Do lado brasileiro, 48% das exportações de ferro e aço foram destinadas aos Estados Unidos em 2024, tornando-os o principal comprador desses produtos brasileiros. Essa relação não é casual: os Estados Unidos e a Europa exploraram tanto suas jazidas que hoje quase não têm mais reservas significativas de minério de ferro. O Brasil possui algumas das maiores reservas do mundo, com Carajás tendo 190 bilhões de toneladas.
Carne brasileira: 21,7% das importações americanas
O Brasil é um fornecedor estratégico de carne bovina congelada para os Estados Unidos. Nos últimos 12 meses (junho 2024 a maio 2025), o Brasil representou 21,7% de todas as importações americanas de carne bovina congelada, totalizando US$ 1,3 bilhão de um mercado total de US$ 6,1 bilhões.

Esse setor sustenta milhares de empregos tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Do lado brasileiro, envolve frigoríficos, produtores rurais, transportadoras e portos. Do lado americano, gera empregos em importação, distribuição, processamento e varejo de carnes.
Empregos e mercado estratégico
O Brasil representa 2,6% de todas as exportações americanas globalmente, segundo dados do governo americano. Essa participação sustenta diretamente 130.000 empregos nos Estados Unidos, conforme dados oficiais do Departamento de Estado americano.
Os produtos brasileiros geram milhões de empregos nos Estados Unidos. Apenas no setor de café, 2,2 milhões de trabalhadores americanos dependem diretamente da cadeia produtiva. No setor siderúrgico, milhares de empregos em usinas, portos e transporte dependem do minério de ferro brasileiro.
Do lado brasileiro, segundo estudo da Amcham Brasil (Câmara Americana de Comércio), as empresas que comercializam com os EUA empregam diretamente mais de 500 mil brasileiros e indiretamente outros 1,5 milhão de trabalhadores. No agronegócio, os Estados Unidos exportam para o Brasil principalmente trigo, milho, soja processada e carne bovina. Na energia, destacam-se óleo diesel, gasolina e gás natural liquefeito.
Brasil como mercado estratégico para produtos americanos
Enquanto Trump critica o Brasil, os dados revelam que o país é um mercado fundamental para diversos produtos americanos. Longe de ser um “parasita”, o Brasil é um dos principais compradores mundiais de produtos americanos em vários setores estratégicos.

O produto de maior valor nas exportações americanas para o Brasil são as aeronaves civis, motores e peças, totalizando US$ 10,5 bilhões nos últimos 12 meses, até maio último, segundo o Departamento de Estatística do governo americano (US Census Bureau). O Brasil representa 7,8% de todas as exportações americanas desse setor.
Participação do Brasil nas Exportações Americanas por Produto:
• Hidróxido de Sódio: 41,1% (US$ 608 milhões)
• Enxofre: 33,6% (US$ 87 milhões)
• Fertilizantes Potássicos: 28,0% (US$ 343 milhões)
• Fertilizantes Diversos: 22,9% (US$ 605 milhões)
• Inseticidas/Fungicidas: 19,4% (US$ 893 milhões)
• Carvão: 9,5% (US$ 1,15 bilhão)
• Polímeros de Etileno: 9,2% (US$ 1,53 bilhão)
• Aeronaves Civis: 7,8% (US$ 10,5 bilhões)
• Óleos de Petróleo/Diesel: 4,2% (US$ 4,8 bilhões)
Fonte: US Census Bureau / Comex Stat MDIC
No setor de fertilizantes, o Brasil é igualmente estratégico. Representa 33,6% das exportações americanas de enxofre (US$ 87 milhões de um total de US$ 258 milhões), 28% dos fertilizantes potássicos (US$ 343 milhões de US$ 1,22 bilhão) e 22,9% dos fertilizantes diversos (US$ 605 milhões de US$ 2,64 bilhões).
Na área de energia, o Brasil importa US$ 4,8 bilhões em óleos de petróleo e diesel, representando 4,2% das exportações americanas desse setor (US$ 113,4 bilhões globalmente). Também importa US$ 1,8 bilhões em petróleo cru, equivalente a 1,7% das exportações americanas (US$ 109,9 bilhões globalmente).
Apenas nos cinco principais produtos (aeronaves, óleos de petróleo, petróleo cru, polímeros e medicamentos), o Brasil movimenta mais de US$ 20 bilhões anuais em importações dos Estados Unidos.
Eduardo Bolsonaro e a ausência total de patriotismo
Essas ofensivas não aconteceram no vazio. Elas vieram logo após a reunião dos BRICS, onde o Brasil participou ativamente da estratégia de diversificação comercial. Trump vem atacando os BRICS há dias, chegando a ameaçar tarifas de 10% a todos os países membros.
O que mais choca é ver a ultradireita brasileira não apenas aceitar as mentiras explícitas da carta de Trump, mas celebrá-las. Eduardo Bolsonaro chegou a agradecer publicamente a Trump pela decisão de impor tarifas de 50% ao Brasil, demonstrando um antipatriotismo sem precedentes. Em vez de defender o país contra as ofensivas baseadas em mentiras, Eduardo preferiu se alinhar com quem agride o Brasil.
A ironia é cruel: Eduardo está sendo mantido nos Estados Unidos com dinheiro do pai, que por sua vez vem de doações de setores produtivos que serão os primeiros prejudicados por essas tarifas.
Resistência e soberania nacional
Felizmente, o Brasil de hoje não é o Brasil de antigamente. Temos uma corrente de comércio diversificada com outros países. Os Estados Unidos, embora importantes, não representam dependência existencial. Graças ao trabalho do governo Lula e aos BRICS, podemos diversificar mercados se os norte-americanos não quiserem fazer negócios conosco.
Há ainda uma ironia cruel nessa história toda. Quem paga essas tarifas são os importadores norte-americanos, não o Brasil. Os bolsonaristas tentam emplacar no governo Lula a fama de taxador, mas quem está taxando de forma dramática seus próprios empresários é justamente o presidente Donald Trump.