
Colaboração de Luciana Targino
Após avaliar a situação do Brasil, a relatora especial sobre a violência contra as mulheres, Reem Alsalem, defendeu, nesta quinta-feira (22/6), durante a 53ª reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o fim de toda e qualquer legislação pautada na chamada “síndrome de alienação parental”, considerada por muitos especialistas como uma “pseudociência” ou uma “patologia inexistente”.
No documento, ela afirma que os esforços para acabar com a violência doméstica no Brasil “não são ativamente realizados” e denuncia que advogados e especialistas que atuam em defesa da alienação parental estejam fazendo “lobby para garantir que nenhuma medida fosse tomada para proteger as vítimas”.
Em 2017, uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Brasil encontrou uma correlação entre alienação, violência doméstica e abuso sexual.
Com o posicionamento da ONU, espera-se, agora, que ganhe força, no Brasil, o movimento que pede a revogação da Lei 12.318, a chamada Lei de Alienação Parental. Aprovada em 2010, a Lei surgiu de uma proposta do Deputado Regis de Oliveira, do PSC-SP.
Atualmente, estão tramitando quatro projetos de lei que versam sobre a revogação da Lei de Alienação Parental. Dois deles, o PL 6371/2019 e o PL 2812/2022 estão em tramitação na Câmara dos Deputados. Tramitam no Senado outros dois projetos, o PL 1372/2023, de autoria do Senador Magno Malta (PL-ES), e o PL 2235/2023, proposto pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, liderada pelo Senador Paulo Paim (PT-RS)
“Dentro do contexto dos casos que envolvem a custódia de crianças, existe uma violência multifacetada que ainda não entrou na consciência coletiva da comunidade internacional como uma questão de direitos humanos”, disse a relatora.
Segundo ela, quando uma mãe é acusada de alienar o seu filho, a acusação se converte em uma espécie de “profecia autorrealizável”. Então, as denúncias sobre violência de gênero ou sexual são relegadas a segundo plano, reduzidas a um conflito menor que patologiza e estigmatiza as mulheres e seus filhos.
Nos últimos dias, o relatório de Reem Alsalem obteve mais de 6 mil assinaturas no Brasil. O documento mostra as violações aos direitos humanos de mulheres e crianças praticadas com o amparo da chamada “lei de alienação parental”. As consequências, segundo ela, são desastrosas, principalmente, para as mulheres e seus filhos quando vítimas de violência de gênero ou sexual praticadas pelo pai.
"Within the context of child custody cases, there exists multi-layered violence that has yet to enter the collective conscience of the international community as a human rights issue"
Reem Alsalem (@UNSRVAW) speaking at the @UN Human Rights Council.#HRC53 pic.twitter.com/UDN7Pp0kzR
— United Nations Human Rights Council (@UN_HRC) June 22, 2023
Ainda de acordo com o documento, após Reem Alsalem ter manifestado sua preocupação com o uso da síndrome de alienação parental no Brasil e na Espanha, casos na Europa, América Latina e Caribe foram reportados.
Ainda de acordo com o relatório, um estudo no Brasil constatou que as mulheres foram acusadas de alienação parental em 66 por cento por cento dos casos, em oposição a 17 por cento dos casos em que um homem foi acusado, e os homens fizeram mais acusações infundadas do que as mulheres.
Em razão disso, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) chegou a recomendar ao Congresso Nacional que revoguem a Lei de Alienação Parental por prejudicar mulheres e crianças, beneficiando homens, mesmo quando são agressores ou abusadores da mãe ou dos filhos.
Segundo o Conselho, a chamada “síndrome de alienação parental” é um conceito sem validação científica, não reconhecido como síndrome pela American Medical Association, pela American Psychological Association e não constando no Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM) da American Psychiatric Association como um transtorno psiquiátrico.
Violência conjugal
Ainda de acordo com a relatora, a não consideração da violência conjugal e da violência contra os filhos nas decisões sobre guarda e o regime de visitas “constitui uma violação dos direitos da criança e do princípio do melhor interesse da criança”.
Isso acontece, entre outros, porque o conceito de alienação parental é “usado em litígios de direito de família por agressores como um instrumento para continuar seus abusos e coerções e para minar e desacreditar as denúncias de violência doméstica apresentadas por mães que tentam manter seus filhos seguros”.
Por isso, ela pede que os Estados adotem medidas como a exclusão do conceito de alienação parental da legislação e a capacitação do judiciário em preconceitos de gênero e a dinâmica da violência de gênero.
A presidente da ONG Vozes de Anjos, a psicanalista Ana Maria Iencarelli, revela que a lei compartilhada tem levado muitas mulheres a serem obrigadas a conviver com o pai agressor. Entre os casos, ela conta a história de uma criança que não queria ir para a casa do pai. A mãe já tinha sido vítima de violência doméstica tendo até mesmo uma costela quebrada. Ainda assim, o juiz deu a guarda compartilhada dizendo que os pais precisavam se entender
Outra mulher vítima de violência doméstica que não quis se identificar relata ter sido levada, pela dinâmica da audiência de conciliação, a deixar os filhos com o ex-agressor. “Para piorar, as crianças começaram a ficar violentas e me agredir, como um espelho do que elas vivenciam na casa do pai”, disse.
“Durante a audiência, o judiciário evocou os mesmos argumentos da chamada síndrome de alienação parental para me convencer a aceitar aquilo. Eu me senti como se estivesse sendo novamente agredida”, disse. A mãe sofreu inúmeras violências doméstica que não puderam ser detalhadas para evitar que seja reconhecida.
Segundo os especialistas consultados, os agressores usam as crianças para se vingar das mulheres que ousaram sair de um relacionamento abusivo e denunciar as agressões sofridas. E, para isso, são capazes de usar qualquer tipo de estratégia, inclusive a chamada Lei de Alienação Parental. Em alguns casos, chegam até mesmo a condicionar a devolução de uma criança retirada do convívio com a mãe ao retorno da ex-companheira ao lar.
O pesquisador associado da Universidade de Oxford e PhD em Psicologia pela Universidade de Sussex, Josimar Mendes também critica os pressupostos de “alienação parental” e a “Lei de Alienação Parental”.
Isso não significa, no entanto, negar que existam problemas nos conflitos familiares, mas que eles não devem ser tratados de forma simplista e rasa que apenas patologiza, criminaliza e medicaliza os fenômenos que ocorrem após o rompimento da relação de afeto entre os pais.
“A lei acaba apenas reforçando estereótipos e visões misóginas acerca da mulher, acentuando o risco e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes”, disse.
Confira o PL que pediu a revogação da Lei de Alienação Parental: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2233358