Oportunismo diplomático e manipulação da miséria alheia: o caso Skripal. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 3 de abril de 2018 às 6:48

POR EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ARAGÃO, ex-ministro da Justiça

Premiê britânica Theresa May. Foto: Wikimedia Commons

Há dias o governo conservador do Reino Unido está às turras com o governo de Moscou, atribuindo-lhe autoria intelectual no envenenamento, em solo britânico, do ex-agente duplo de naturalidade russa Sergej Skripal e de sua filha Julia Skripal. A imputação foi suportada, também, pelo governo de Donald Trump.

O único indício que levaria à suspeita sobre o envolvimento da Rússia seria a proveniência do veneno supostamente utilizado, o composto Nówitchok, desenvolvido como arma química na antiga União Soviética. O governo de Moscou refuta com veemência as acusações, atribuindo-as à perda de compostura dos governos britânico e norte-americano e ao interesse da Grã-Bretanha de chamar para si a solidariedade internacional.

Com efeito, vinte e quatro países da União Europeia declararam diplomatas russos persona non grata, em apoio à iniciativa britânica de expulsar dezenas de agentes da embaixada da Rússia em Londres. A solidariedade coletiva nesse âmbito é inédita e de extrema truculência, ainda mais que repousa sobre fragilíssima suposição de participação oficial num atentado a pessoa de vida profissional controvertida, meramente porque, há décadas, o produto talvez usado no episódio teria sido desenvolvido e fabricado pelo governo soviético.

Há diversos aspectos que militam contra a autoria oficial russa. Em primeiro lugar, a Federação Russa, como membro da Organização para Proibição de Armas Químicas (OPCW), se submete regularmente a sua fiscalização ostensiva. Ainda na década de noventa do século passado e na primeira deste século, destruiu todo o arsenal de armas químicas que herdou da antiga URSS, sendo o procedimento auditado pela OPCW. Em segundo lugar, é notório que a Rússia perdeu maciçamente seus cérebros especializados na tecnologia de guerra após o fim da URSS. A maioria migrou para os países ocidentais e lá encontrou oportunidades bem mais rentáveis para sua pesquisa. Com esses cérebros, migrou também o know-how para produzir armas como o Nówitchok.

Em outras palavras, é muito mais provável que o Nówitchok supostamente utilizado no ataque aos Skripal tenha sido produzido fora da Rússia e não é de descartar que a possível escolha desse armamento químico tenha sido tática de desviar a atenção dos verdadeiros interessados na morte do ex-agente duplo, facilitando a culpabilização da Rússia, que, há tempos, é vítima de política agressiva da aliança ocidental na expansão desta para o leste. A ação hostil da OTAN e eventualmente da União Europeia tem, por certo, impactado de forma assaz negativa a coexistência pacífica entre a Federação Russa e seus vizinhos.

O que mais chama atenção no episódio do envenenamento de Sergej Skripal e de sua filha Júlia é a inesperada melhora do ambiente em que se disputa a saída do Reino Unido da União Europeia. O ar carregado entre as partes deu lugar ao discurso regional de empatia, extremamente favorável ao governo conservador de Londres. A primeira a ver na frágil suspeita uma oportunidade de amenizar o embate com a primeira ministra May foi a calculista Angela Merkel, que não tardou de puxar a iniciativa coletiva de expulsão de diplomatas russos por mera solidariedade. A Rússia entrou na estória feito Jesus nas mãos de Caifás e Pilatos: crucificado para segurar a ira da massa falso-moralista. A Rússia está sendo claramente usada para reaproximar os britânicos da União Europeia e calar aqueles que querem impor um alto preço à secessão do Reino Unido. E o estratagema, por mais que aumente o risco de um confronto maior, está dando certo. Com a compaixão continental, quiçá, as condições do “Brexit” sejam menos duras! E a Rússia que pague o preço.

É impressionante como a ética anda baixa na política global. O golpismo passou a fazer parte de nosso dia a dia, como joguetes das disputas entre as economias centrais. E, como no Brasil, os que golpeiam não têm escrúpulos de mentir ao distorcer meias verdades para articular acusações falsas. E nós, os comuns dos mortais, que assistamos a esse circo de pós-verdades como idiotas, acreditando na boa-fé dos que nos iludem, ou, como desgraçados, que, sabedores da capacidade dessa turma de mentir de cara limpa, se veem impotentes diante de tanta audácia.

É por isso que a Rússia merece nosso crédito e nossa solidariedade. O governo do Reino Unido que trate de provar inequivocamente sua participação no envenenamento de Sergej Skripal e sua filha, ou que se cale e deixe de ser irresponsável ao nos impor o risco de maior deterioração do ambiente de tensão leste-oeste. Que saibam que o mundo se lembra bem do teatro que Tony Blair montou com George Bush Jr., para atacar o Iraque, atribuindo-lhe mentirosamente a posse de armas de destruição em massa. Não precisamos de uma nova guerra, nem fria e nem quente, para atender aos caprichos interesseiros do governo de May em sua saída da União Europeia.