Os aliados dos EUA estão mesmo chocados com a espionagem ou é jogo de cena?

Atualizado em 17 de outubro de 2014 às 17:23

US President Barack Obama meets with Ger

 

Publicado originalmente na BBC Brasil.

 

Se a Agência de Segurança Nacional americana (NSA, na sigla em inglês) realmente grampeou o celular de Angela Merkel, como os alemães acreditam, os americanos terão quebrado uma regra fundamental da espionagem – cortesia do ex-funcionário da inteligência fugitivo Edward Snowden.

Em termos simples, eles foram pegos. Nos últimos dias, uma série de reportagens indicaram o alcance das atividades de vigilância americanas – na França, na Alemanha e na Itália. Governos europeus aliados dos Estados Unidos estão um tanto irritados e a administração Obama está um tanto envergonhada.

Eu digo “um tanto” porque, pelo que indicam os comentários desde o início destas revelações, há uma espécie de jogo de sombras acontecendo aqui.

É um pouco como naquele momento do filme clássicoCasablanca, quando o chefe de polícia demonstra surpresa ao saber que acontecem jogos de azar em um estabelecimento que ele sabe muito bem ser um cassino – momentos antes de que um funcionário o entregue o dinheiro que ele também ganhou apostando.

Quase todos os governos realizam operações de vigilância e espionagem contra outros países cujas atividades são importantes para eles.

Alguns são amigos; alguns são inimigos; alguns podem só estar em locais interessantes ou ter laços com países que são de interesse.

‘Coisas acontecem’

O que as diferencia são o alcance e a escala destas operações. Isso depende da motivação e dos recursos disponíveis.

Não surpreende que os Estados Unidos, com seu sentido de missão global, sua constelação de agências de segurança diferentes e suas habilidades técnicas tenha um alcance maior que a maioria.

Os governos podem até expressar surpresa quando tais atividades aparecem à luz do dia. Às vezes, isso pode ter sérias consequências.

Israel e os Estados Unidos são aliados próximos, mas cada um deles tenta conseguir vantagens coletando informações sobre o outro.

Mas quando, em 1985, um analista civil da Marinha americana, Jonathan Pollard, foi revelado como um espião israelense – algo que Israel demorou a reconhecer – ele foi julgado e permanece na prisão.

Por algum tempo, os laços de inteligência entre os países foram fortemente ameaçados.

Em outras situações, a vigilância pode ser desmascarada, mas nenhum culpado é identificado.

Em maio de 2012, muitas “portas dos fundos” foram encontradas em programas de computador nos escritórios mais recônditos do Elysee Palace – a residência do presidente francês.

Os franceses suspeitaram fortemente da Agência de Segurança Nacional, apesar de os americanos negarem qualquer responsabilidade.

Isso impediu que o presidente François Hollande continuasse ao lado dos americanos apoiando uma ação militar na Síria?

Não – assim como Israel e os Estados Unidos ultrapassaram o caso Pollard e mantêm laços militares e de segurança.

Então “coisas acontecem”, como disse certa vez o ex-secretário de Defesa americano Donald Rumsfeld.

Quando tais episódios são revelados, a parte prejudicada – neste caso os governos francês, alemão, brasileiro e mexicano (e a lista vai crescer) fica incomodada.

Eles protestaram. Eles estão dizendo todas as coisas que seus eleitorados esperam que eles digam nestas circunstâncias.

A Alemanha e a França querem ir mais além e arrancar algum tipo de documento de Washington, certificando que irá “comportar-se” no futuro.

Mas além de um ato público de contrição, tal documento provavelmente não valeria nem o papel em que estiver escrito.

Logo mais os espiões voltaram ao trabalho como antes. Mas será?

Por outro lado, apesar da possibilidade de que parte da surpresa sobre o alcance da vigilância americana seja falsa, nem tudo é atuação.

Há preocupações reais e seria errado dizer que toda condenação a Washington é hipérbole. Coisas importantes estão acontecendo no mundo e duas delas são de importância central aqui.

Uma delas é que esta é a era do “big data” (coleta de dados complexos e em larga escala), da nuvem e da nossa crescente dependência das máquinas.

snowden

Ao lado disto está o fato de que a habilidade técnica para monitorar, armazenar e separar informações cresce exponencialmente.

Isso levanta todo tipo de preocupações reais sobre a privacidade, a extensão das ações do Estado e assim por diante, questões que foram jogadas sob os holofotes pelas revelações de Edward Snowden.

O “big data” também nos expõe potencialmente a um risco maior de ciberataques.

Então a questão sobre onde devem ser os limites da vigilância é quase sempre problemática. De fato, até agora a discussão só se concentrou em vigilância e contraterrorismo

Mas há debates igualmente importantes no campo da defesa contra ciberataques, onde alguns dizem que bancos de dados também grandes – a maioria privados, mas que transitam na esfera pública – podem precisar ser analisados.

A outra grande mudança é na arena internacional. Novas potências econômicas estão surgindo.

Os Estados Unidos continuam sendo um dos principais atores, mas em termos absolutos, são menos dominantes.

Por isso, o país precisará agir mais com seus aliados para conseguir as coisas, mas ação conjunta requer confiança.

A liderança americana também requer uma imagem positiva. Hoje, o “soft power” americano – sua força de exemplo – importa tanto quanto sua força militar.

E esta imagem foi prejudicada pelas revelações de espionagem.

Aqueles que são céticos a respeito do poder americano ganharam mais razões para manter essa visão.

E os que comemoraram o desejo do presidente Barack Obama de afastar a política externa americana da tortura e de Guantánamo – e torná-la mais baseada nos valores americanos – ficarão frustrados.