Os ecos das “jornadas de junho” no protesto dos “jalecos amarelos” na França. Por Willy Delvalle, de Paris

Atualizado em 4 de dezembro de 2018 às 7:48
Manifestantes do movimento dos coletes amarelos carregam uma bandeira da França durante protesto na avenida dos Champs-Elysees, em Paris Foto: BERTRAND GUAY / AFP

O Arco do Triunfo no meio das chamas. Uma grande nuvem de fumaça. No confronto entre jalecos amarelos e a policia, Paris virou um palco de deflagração. E não foi só a capital. 

Bloqueios, ocupações, atos de manifestação dos “gilets jaunes” foram registrados em diversas cidades do país. 137 mil pessoas, segundo o governo, se manifestaram no último sábado. Mais de 300 pessoas foram presas. Houve mais de uma centena de feridos nos confrontos com a polícia. Uma mulher morreu. 

O movimento mais violento das últimas décadas monopoliza as discussões na imprensa. O país espera (ainda) preocupado uma reação do governo. Nada indica que os gilets jaunes vão se acalmar. 

Estaria a França vendo um ato paralelo ao que viu o Brasil em 2013? 

Quem queria acompanhar o embate não precisava sair de casa. Tudo era transmitido ao vivo pela televisão, mas também pelos celulares. Os jalecos amarelos, referência à vestimenta dos manifestantes que mergulharam o presidente Emmanuel Macron em sua maior crise política desde a eleição em maio do ano passado, foram submetidos a um controle da polícia no acesso à região da Avenida Champs Elysées, onde fica o palácio da Presidência. Revista. A maior parte não aceitou e a manifestação se dispersou por diversos pontos de Paris, sobretudo pelos bairros mais nobres. 

Era 1º de dezembro, três semanas depois do evento em que o presidente da República celebrava com dezenas de chefes de Estado a paz, na comemoração dos 100 anos do fim da Primeira Guerra Mundial. 

Macron se apresentava como o líder da paz, dos valores humanistas, frente ao nacionalismo que ameaça a democracia no mundo. O mesmo Arco do Triunfo sediará a mobilização que o Libération descreveu como a mais violenta desde maio de 1968. 

Nesse e em outros pontos do país, 133 pessoas ficaram feridas, mais de 100 carros foram queimados, 23 deles pertences à polícia, 1.300 granadas foram acionadas, lojas foram saqueadas, vitrines quebradas. Uma grande e pesada grade de metal do Jardin des Tuileries, um dos principais parques parisienses, foi derrubada, caindo sobre um dos manifestantes, que entrou em coma. Em Marseille, no litoral sul, uma mulher de 80 anos morreu depois de ser atingida por estilhaços de uma bomba lançada para conter quem protestava. 378 manifestantes, dentre eles 33 menores, foram detidos. 

Segundo o governo, o terceiro sábado seguido de protestos reuniu mais de 137 mil manifestantes, dentre os quais 100 mil na capital. O número é menor do que em 17 de novembro – 166 mil, e do que no primeiro fim de semana de atos: 282 mil. Mas a escalada de violência só aumenta. 

O que reivindicam? 

Imagens das manifestações dos “coletes amarelos” durante manifestação em Paris. Bertrand GUAY / AFP

O movimento começou depois que o governo anunciou o aumento do preço dos combustíveis, em consonância com os compromissos ambientais assumidos pela França, que sediou o Acordo do Clima de Paris, em 2015. Foi o estopim.

Grande parte dos manifestantes é do interior, onde a oferta de transporte público é muito menor. Mesmo na região metropolitana parisiense, a diferença na disponibilidade de trens e ônibus é nítida em relação à capital. Parte dos manifestantes também vem da periferia, que assim como no interior vê no carro uma necessidade. 

Na primavera (outono brasileiro), Macron havia anunciado a reforma no estatuto dos ferroviários, na empresa pública de trens – a SNCF – e o fim de linhas de trem em diversas pequenas cidades do país. Contra essas medidas, os ferroviários entraram em greve, mas o governo não recuou.

Com o novo anúncio, os moradores dessas cidades veriam o preço do combustível aumentar, assim como o crescente custo de vida, sem aumento de sua renda. Ai se juntam aqueles que não têm carro. 

Eles relatam dificuldade para pagar as contas ao fim do mês. E dizem que a exoneração de um dos impostos na folha de pagamento (resultando em aproximadamente 20 euros a mais por mês) pelo governo Macron é insuficiente. Eles contam terem vendido bens, como casa e/ou carro para honrar as despesas. 

Uma parte está desempregada, mas não necessariamente a maioria. São pessoas que se sentem desprezadas pelo neoliberalismo, representado por Macron, que, perguntado recentemente sobre o desemprego (9,3%, segundo o Eurostat), disse que bastava atravessar a rua para encontrar trabalho. 

Muitas pessoas, no entanto, precisam se deslocar para outras cidades, a até 60 km para encontrar um emprego. E mesmo assim, sentem que seu poder aquisitivo está cada vez mais limitado, razão pela qual bloqueiam comércios, empresas e rodovias país adentro. 

Além de mais poder de compra, e do não aumento do preço do combustível, outras 40 reivindicações surgiram nos últimos dias, dentre elas: abrigo para todos; mais impostos para grandes empresas; aumento do salário mínimo; indexação da aposentadoria à inflação; emprego para todos; redução de idade para a aposentadoria e proteção à indústria francesa. 

Deputados do partido de Macron, La Republique en Marche, sugerem uma moratória, revogar temporariamente o aumento do preço dos combustíveis. Os gilets jaunes querem mais e não acreditam que Macron possa atender suas demandas. Eles pedem sua demissão. 

Onde estão no espectro político? 

Os gilets jaunes são um conjunto de diferentes perfis ideológicos, mesmo opostos. Agressões foram registradas entre os próprios manifestantes.

Uma pesquisa do instituto Viavoice realizada entre os dias 28 e 30 de novembro identificou onde os gilets jaunes são mais apoiados. No geral, 53% dos entrevistados se dizem favoráveis ao movimento. 31% não apoia, mas diz compreendê-lo. 

Quando a divisão é por espectro ideológico, o maior apoio está na extrema direita. Na extrema direita, o apoio é massivo, 82% dos simpatizantes do Rassemblement National. Na esquerda, são apoiados por 60%. Na direita, 57%. Entre os que se dizem distantes de qualquer partido, 53%. O menor apoio aos jalecos amarelos está entre os simpatizantes de Macron, 15%. 

No segundo ato de manifestações, o governo atribuiu a “quebradeira” a extremistas de direita, no que pode ser uma estratégia para acender a repulsa que ainda existe no país em relação a esse espectro político, associado ao período de colaboração com o nazismo. 

O Rassemblement National, partido de Marine Le Pen, por sua vez, atribui os atos à extrema esquerda. Questionado por jornalistas, um deputado do RN não soube informar a fonte de sua acusação. 

Por outro lado, os líderes da oposição, ávidos por ver a queda de Macron, tentam se apresentar como suas lideranças. Esse é o caso de Jean-Luc Mélenchon, do partido La France Insoumise (esquerda) e Marine Le Pen (extrema direita/direita radical), mas nenhum deles veste um colete amarelo. 

O Partido Socialista, do ex-presidente François Hollande (2012-2017), foi reticente no início e agora propõe um pacto de diálogo entre governo, partidos, parlamentares e manifestantes, em consonância com a proposta de François Bayrou, do partido centrista MoDEM. 

A postura mais ambígua é a de Laurent Wauquiez, líder do Les Républicains (direita), que foi flagrado forjando uma foto com gente vestida de coletes amarelos, sem dizer que eles eram, na verdade, membros de seu próprio partido. 

No último sábado, foram vistas bandeiras anarquistas, grupos antissemitas, neonazistas, mas também anarquistas. Estudantes do ensino médio ensaiam uma adesão ao movimento, em vista da medida anunciada pelo governo Macron de implementar uma seleção no acesso ao ensino superior, que, nas universidades públicas, hoje é livre na graduação.

Há quase duas semanas, uma série de agressões dos jalecos amarelos contra minorias foi denunciada na mídia. Na pequena cidade de Saint-Quentin, uma mulher muçulmana foi forçada a tirar o véu. Em Cognac, uma outra mulher negra foi alvo de ofensas racistas, aos gritos de “volta pra sua casa, para o seu país”. 

Um casal de homossexuais foi agredido em Bourg-En-Bresse. De forma mais sistemática, as vítimas são os jornalistas, um deles agredido ao vivo.

A imprensa, logo no início da mobilização dos gilets jaunes, a associou ao poujadismo, movimento reacionário em defesa dos interesses da pequeno-burguesia (comerciantes e artesãos), contrários a impostos e ao parlamento, o qual criticava apontando sua “ineficácia”. 

Renegando também os intelectuais, o poujadismo conseguiu eleger 52 deputados, mas ao final dos anos 1950 fracassou nas urnas. Seu remanescente mais famoso é Jean-Marie Le Pen (pai de Marine), que por diversas vezes negou a existência do holocausto.

O movimento dos gilets jaunes parece mais amplo pelo fato de juntar descontentes com a politica de Macron e o que ela representa, a elite neoliberal. Os manifestantes não são socialistas, mas portam um discurso contra a elite. Um deles levava no jaleco a mensagem: “pare ecologia burguesa”. Em Paris, uma grande placa foi colada na fachada de um prédio em pleno centro, dizendo: “Macron, pare de punir os pobres”.

Mesmo assim tem semelhanças com os poujadistas. O discurso anti-impostos é uma. Também são hostis ao parlamento. Querem a formação de uma assembleia popular. São avessos à ideia de representação, o que tem sido uma dificuldade no diálogo com o governo. Um coletivo de jalecos amarelos propôs uma reunião com o governo. Jacline Mouraud, membro do grupo, diz ter sido ameaçada de morte. O encontro foi cancelado.

Outra proposta de diálogo de um “representante” eleito por Facebook tinha como condição a transmissão ao vivo pela televisão. O primeiro-ministro Edouard Philippe recusou. 

Agora, um porta-voz do movimento reivindica também a demissão do primeiro-ministro. Mas o mais polêmico é o que ele propõe na sequência; que Edouard Philippe seja substituído por um(a) militar. “Queremos um verdadeiro comandante, quer dizer um homem ou uma mulher, que vai levar a sério o futuro da França”. 

O nacionalismo está presente nos símbolos. Nas manifestações, eles portam a bandeira da França e cantam o hino.

Uma professora universitária diz estar “perplexa” com o movimento: “eles querem consumir mais. Isso é absolutamente conveniente com o capitalismo”. Outra, do setor empresarial, está de acordo com algumas críticas, como a desoneração por parte do governo sobre grandes fortunas (uma espécie de CPMF). Ela discorda do método: “quebrar nao”. Uma venezuelana que mora há anos na França e trabalha no setor da imigração, cujas leis Macron restringiu, discorda: “talvez seja necessário quebrar para haver uma mudança”. 

Relações com o Brasil 

Confesso que desde o início do movimento, senti apreensão, por lembrar dos atos de 2013 no Brasil que ensinaram à direita que ela poderia voltar às ruas e tornar legítimas suas reivindicações, mesmo que fossem ilegítimas.

Mas esses atos são mais violentos. Jamais havia visto manifestantes fazendo aos gritos um esquadrão de choque recuar, como aconteceu este sábado, atirando paus e pedras. 

Estou acostumado à dinâmica de protestos do Brasil, onde os manifestantes de esquerda são a presa e a polícia a predadora, onde os manifestantes de direita nada quebram e contam com a boa vontade da polícia, pois os dois representam a “ordem”. 

O clima de insurreição aqui foi instaurado. A palavra de ordem é “colère” (ira, raiva). O problema é quando o sentimento é desprovido de razão. Um homem ser movido apenas por raiva é uma negação da razão. E um homem sem razão, apenas com raiva, se desumaniza e se transforma numa fera. 

A quem atacará? De início, o policial. E depois? 

Que a mensagem dos jalecos amarelos gere uma política que persiga a precariedade e não os precários, como acontece hoje no Brasil.