
Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor
POR LUIS FELIPE MIGUEL, professor de ciência política da UnB
Não creio que a derrota de outubro possa ser creditada a erros na condução da campanha de Haddad.
Erros ocorreram, decerto. Nada no mundo é perfeito – com exceção, talvez, das suítes para violoncelo de Bach e de algumas gravações do quinteto de Miles Davis, com Coltrane no sax, nos anos 1950. Mas a campanha foi a possível para o PT, nas circunstâncias em que ocorreu. Estive com Boulos no primeiro turno, mas avalio que o PT fez as opções certas do ponto de vista das chances eleitorais.
A insistência inicial na candidatura de Lula cumpriu seu papel de marcar a identidade e denunciar o arbítrio. A transferência de votos começou bem, apesar da facada de Adélio, e só não se concretizou como previsto devido à onda de mentiras nas redes sociais. Haddad se mostrou um excelente candidato, com firmeza e serenidade notáveis – e isso digo eu, que sempre o achei um representante do setor menos combativo de seu partido. A mudança do holofote da campanha para ele, sem por isso esconder Lula, no segundo turno, foi correta e bem feita. Tenho dúvidas sobre a solução para a vice-presidência, mas não é tão relevante. Os programas de TV foram, em geral, excelentes.
Sem querer voltar a um assunto vencido, é claro que Ciro Gomes não teria sido melhor opção. Ao se tornar a opção da esquerda, ele teria atraído para si todo o antipetismo. Seu temperamento explosivo o torna alvo ideal para a campanha suja na internet. E ele não teria a seu favor a militância que se mobilizou no segundo turno. Aposto mil reais que ele ficaria bem abaixo dos 47 milhões de votos que Haddad conquistou – quem tiver acesso a uma dimensão paralela depois avisa se ganhei ou perdi a aposta. (E nem estou falando do projeto político ambivalente de Ciro, já que meu ponto aqui não é projeto, mas potencial eleitoral.)
Os erros que fragilizaram a esquerda em geral e o PT em particular vêm de antes. Não creio que pudessem ser resolvidos no espaço de uma campanha eleitoral.
O primeiro deles é de caráter prático: incapacidade de entender as mudanças que as mídias sociais trouxeram para a dinâmica da disputa política. Sim, a campanha de Haddad podia ter se mexido mais nessa área, mas o fato é que a direita investe pesadamente há anos e tem uma vantagem enorme. Como regra, preferimos virar o rosto e não olhar para esse feio mundo de correntes de zap, canais de youtube e “digital influencers” turbinados por dinheiro grosso. Não se trata de mimetizar as táticas da direita – acredito numa esquerda que não tenha nem os recursos nem a falta de escrúpulos necessária para isso – mas de entendê-las para assim encontrar formas de combatê-las.
O segundo é circunstancial: o fraco enfrentamento da narrativa imposta pela direita sobre a política brasileira. O sociólogo Jessé Souza condenou recentemente a fraca crítica à Lava Jato durante a campanha, tanto por Haddad quanto por Ciro, que adotaram o discurso de apontar apenas desvios pontuais. Sem dúvida. Mas, do ponto de vista eleitoral, uma guinada deste tipo dificilmente seria produtiva. Desde o escândalo do mensalão, a parcela majoritária da esquerda brasileira foge de qualquer confronto com a indústria do “combate à corrupção” e busca apenas uma acomodação com ela. A maneira como o governo Lula permitiu o desenrolar da investigação e do julgamento do mensalão, sem esboçar qualquer reação, apontou o padrão que prosseguiu com a Lava Jato.
Trata-se de uma manifestação do terceiro erro, certamente o mais fundamental de todos: a opção por uma política de evasão do enfrentamento, desde sempre. Não se trata de fazer a crítica ritual à “conciliação de classes”, mas de ver que o lulismo, que entendo como a resposta a uma correlação de forças muito negativa para o campo popular, optou por não trabalhar para mudar esta correlação mesmo quando as circunstâncias pareciam mais favoráveis. Não institucionalizou práticas democratizantes, não mexeu no aparelho repressivo do Estado (Judiciário à frente) e nem mesmo no seu comando, não investiu na mobilização de suas bases, não agiu contra o monopólio da informação, não politizou o debate, não disputou as representações dominantes do mundo social.
As vitórias eleitorais do PT caminharam junto com o avanço da ideologia do empreendedorismo e da “meritocracia”, do individualismo e da dessolidariedade, do neopentecostalismo reacionário. O valor da igualdade foi dissolvido na “igualdade de oportunidades” liberal. A identidade de classe trabalhadora foi apagada em favor de uma noção farsante de “classe média”. A ideia de “luta de classes” só existia como acusação na boca de seus adversários. O partido exibia não só para seus aliados de ocasião, mas para o próprio eleitorado, a modéstia de suas ambições transformadoras como demonstração de confiabilidade. Mas sem o enfrentamento das visões de mundo que comandam os afetos políticos, qualquer avanço é incerto.