“Os fascistas não vão parar só com a censura no Santander”: artista que teve quadro apreendido em museu fala ao DCM

Atualizado em 19 de setembro de 2017 às 9:19
A polícia apreende quadro de Alessandra Cunha em museu do MS

Há que se preocupar. Afinal, o que se pode dizer sobre tempos em que exposições artísticas são canceladas? Quando um candidato à presidência como Jair Bolsonaro placidamente posta em redes sociais que ‘tem que fuzilar os autores da Queermuseu’?

Tempos em que o Judiciário cede à pressão de grupos ligados a TFP e concede liminar para suspender uma peça de teatro pois a atriz principal, Renata Carvalho, é transexual (ocorreu neste último final de semana na cidade de Jundiaí)?

A mais nova vítima da patrulha das trevas é Alessandra Cunha. Artista plástica há quase uma década, Alessandra contabiliza 36 exposições individuais inclusive em países como México, Alemanha e Canadá.

Premiada em salões de artes, no final da semana passada ela viu sua exposição ‘Cadafalso’ ser invadida por um delegado chamado Fábio Sampaio (que tinha a imagem de uma santa presa na lapela) acompanhado de agentes da perícia criminal. Um de seus quadros foi apreendido. “Os fascistas não vão parar só com a censura no Santander”, disse ela ao DCM.

Qual era a temática da exposição?

Refere-se à triste submissão das mulheres aos mandos dos homens ao longo da história da humanidade. Não se trata de uma bandeira puramente feminista, trata-se de relatos poéticos/visuais de como as pessoas do sexo masculino se portam diante das demandas de dominação religiosa, política e econômica. As mulheres, crianças, homens pobres, negros, homossexuais, transgêneros e simpatizantes, são tratados como seres inferiores e desvalorizados de todas as formas.

Como recebeu a notícia da apreensão do quadro?

Confesso que estava esperando certo tipo de crítica quanto a minha exposição depois que soube do fechamento do Queermuseu, mas jamais imaginei que chegaria a tal extremo. Principalmente porque já estava quase no final do período desta exposição.

Alessandra Cunha

A obra em questão – o quadro intitulado “Pedofilia” – faz claramente uma denúncia sobre esse abuso, ainda assim há quem veja como apologia ao crime (essa é a acusação). Por que as pessoas fazem essa confusão?

Não diria que as pessoas fazem confusão. Esta é a segunda vez que estas pinturas são expostas em galeria e todos, com exceção de meia dúzia de homens brancos autoritários, entenderam. Até mesmo pessoas que não gostaram da estética das imagens entenderam seu conteúdo de denúncia e apontamento de problemas que nos cercam. A perseguição que se deu àquela pintura na verdade não tem muito a ver com a imagem. Quando leram o título ‘Pedofilia’, identificaram algo conhecido e que tratam como tabu, assim desejaram esconder a imagem. Para fingir que tal violência não existe em nossa sociedade.

Já tinha passado por experiência semelhante?

Jamais. Sempre ouvi muitas críticas quanto ao meu trabalho, pois não se baseia na beleza estética tradicional. E com freqüência utilizo as artes em especial pinturas e gravuras para chamar atenção para fatos e comportamentos que de alguma forma prejudicam as pessoas envolvidas. E confesso que sempre trato de temas que afetam as mulheres e crianças, que me são próximos, por entender que a função da arte é mudar, ou ao menos alertar para questões sociais.

Porém, entendi como uma forte violência o seqüestro da pintura de dentro de um museu. Atitude errônea e totalmente desnecessária já que a tela apontada como criminosa, segundo o delegado acusou, não tinha nenhuma intenção de fugir.

Deputados que a denunciaram pedem sua inclusão num cadastro estadual de pedófilos. Que consequências isso pode acarretar para sua carreira?

Minha carreira não pode ser afetada negativamente por algo que não existe. E para acrescentar algum perseguido criminoso a uma lista como esta precisam provar o crime de fato. Então não entendi porque criaram tamanho terrorismo em cima de uma imagem criada de forma poética para levantar questões que precisamos discutir.

O delegado Fabio Sampaio dá seu show na exposição (detalhe para a santinha no paletó)

Acredita que após o espisódio do Queermuseu o patrulhamento conservador aumentou?

Acredito que antes do fechamento precoce da exposição em Porto Alegre o patrulhamento conservador e/ou fascista já ganhava espaço propiciado pelo desarranjo político, onde retiraram uma presidente legitima em prol de políticos corruptos. Assim, os partidários de extrema direita se entenderam no poder de intromissão em assuntos culturais pois sabemos o poder das artes em mudar as opiniões e pensamentos. E com certeza, por terem conseguido fechar uma exposição com as dimensões da Queermuseu, viram oportunidade de armar outro show de repressão.

Peças de teatro sendo canceladas, exposições fechadas, quadros apreendidos. Que tempos são esses?

Estes são tempos que nos chamam para a luta. Precisamos todos, artistas, jornalistas, professores e todos os brasileiros de todas as profissões nos levantarmos contra os fascistas que desejam se instalar no poder e roubar nossos direitos, e que estão quase conseguindo. Tempos de conscientização. Tempos de resistência.

Tempos de união, como a que vimos em Campo Grande, quando os artistas saíram às ruas para se manifestar contra a censura. Não imaginava eu sofrer censura nesta vida, pois me lembro das aulas de história no ensino fundamental e médio, quando me espantava por ter existido no Brasil tantas trevas da ditadura. Trevas que tentam cobrir nossos dias novamente.

Censura