Os inúmeros medos que um ciclista enfrenta em São Paulo

Atualizado em 1 de fevereiro de 2013 às 20:06

Nosso homem da bicicleta desceu a Serra do Mar. E foi testado em sua coragem

Uma pausa para a turma

 

Uma das causas fundamentais do Diário é a bicicleta. Entendemos que, no mundo moderno, o número de bicicletas nas ruas é uma boa medição do grau de desenvolvimento de uma metrópole. São Paulo está miseravelmente atrasada aí. O jornalista Jura Passos se dedicará a defender a causa  no Diário  da melhor maneira possível:  andando de bicicleta, relatando os problemas e propondo soluções. AS fotos são de Wellington Bigolin, do grupo Desafio Bicicletas ao Mar.

Medo de me perder, medo de assalto ou atropelamento, medo de não aguentar, de cair e me machucar, de sair e não voltar.

Eu queria simplesmente descer a Serra do Mar de São Paulo até Santos, montado numa bicicleta, no sentido inverso do que fizeram os padres Nóbrega e Anchieta, seguidos pelos primeiros habitantes estrangeiros desta cidade. Em São Paulo todos os caminhos do mar foram proibidos para as bicicletas.

Como um simples passeio de bicicleta entre São Paulo e Santos pode gerar tanto medo?

Desde que me aventurei pelas ciclovias ao redor de São Paulo, duas palavras – “manutenção” e “improvisação” – se alojaram em cada um dos alforges do meu bagageiro e nunca mais saíram. Vamos ver por quê.

A ciclovia que acompanha o rio Pinheiros e a linha 9-Esmeralda da CPTM nada mais é do que a antiga via de manutenção da linha, paralela à ferrovia. A Rota Marcia Prado – homenagem à ciclista vítima de atropelamento na avenida Paulista, logo após tê-la percorrido – liga a estrada de manutenção da CPTM a outra estrada de manutenção, a da rodovia Imigrantes. Na primeira os ciclistas são bem vindos. A estrada foi asfaltada e pintada de vermelho, a CPTM providenciou segurança, sinalização, água e banheiros ao longo do percurso, ainda que sua função não seja exatamente essa.

Nosso ciclista

Na outra ponta da Rota Marcia Prado, a estrada de manutenção que serpenteia embaixo da Imigrantes não foi adaptada para ciclistas. E, ao contrário da estatal CPTM, a privada Ecovias – concessionária da rodovia – não tem nenhuma razão para agradar os ciclistas. Seu negócio é pedágio, e não ciclovia. A iniciativa privada – ao contrário do Estado – sabe muito bem qual é o seu negócio. A segurança da “manutenção” – como já a apelidaram os ciclistas  – é feita por eles próprios. Ou seja: a manutenção da “manutenção” é uma “improvisação” feita por quem precisa percorre-la com segurança. E a manutenção da “manutenção” da CPTM, é outra improvisação, a cargo de uma estatal de transportes públicos de massa.

Os paulistas vivem sob o domínio do medo, e os ciclistas não são exceção. Só há um jeito de perder o medo: enfrentá-lo. E é por isso que eles andam em bandos. Foi só assim que consegui ir do Jabaquara à ponta da praia em Santos, junto com mais oito ciclistas com os mesmos medos que eu, e pedalar setenta e quatro quilômetros em sete horas. Nenhum récorde de velocidade, pois o caminho convida sempre a adiar a chegada, não a antecipá-la. Essa seja talvez a maior atração da bicicleta (e da caminhada): a viagem está em todo o percurso, e não só na chegada. E o meu grupo não partiu apenas para chegar: a viagem foi organizada para sinalizar as direções a seguir e os perigos do caminho, como em qualquer estrada digna do nome. Uma viagem, enfim, feita para espantar o medo fazendo exatamente a manutenção da “manutenção”. Eu havia encontrado a turma certa mais uma vez.

O site da BBC mostrou como os berlinenses conseguem ser felizes sobre uma bicicleta, e nem querem saber de capacete. Para não vestir a carapuça do complexo de vira-lata dos brasileiros, vou esquecer o nome do país onde começou minha pequena experiência de cicloturista. Digamos que seja a Ciclolândia. Lá você chega na prefeitura de qualquer cidadezinha e uma mocinha muito simpática lhe entrega um mapa dos caminhos internos exclusivos para ciclistas, andarilhos e cavaleiros. Aí você percorre esses caminhos, se guia pelo mapa e pelas placas de orientação, e chega onde quiser.

Bebendo água numa bica de água pura que brota da montanha em meio a penhascos e cachoeiras, dá para ouvir os passos e sentir a exaustão dos primeiros jesuítas e conquistadores – vindos da Ciclolândia – que escalaram aquelas encostas pela primeira vez com a ajuda dos índios que a habitavam. Eles também tinham medo, não havia sinalização, nem segurança, nem grupos do Facebook, Google ou PCC. Mas, em turma, como ciclistas ou gansos em revoada, era possível chegar. Foi possível até tomar conta do pedaço.

Aqui não temos os maravilhosos mapas e ciclovias sinalizadas da Ciclolândia. Mas temos inúmeros grupos de ciclistas que enfrentam todas as barreiras unidos e solidários. Foi graças a um deles que eu, enfim, consegui superar meus medos, achar o caminho e chegar a meu destino.

O ditado que diz “na descida todo santo ajuda” não vale para os ciclistas que se precipitam serra abaixo na trilha do esgoto que vem da “manutenção” da CPTM, atravessa a Billings e é despejado serra abaixo ao longo da “manutenção” da Imigrantes . Como os tupiniquins que acompanharam Nóbrega e Anchieta serra acima, a turma que me ajudou a descer a serra – e me fez desistir de tentar subir – produz os próprios mapas, a própria sinalização e a própria segurança.

O grupo faz sinalizações para os ciclistas

Um novato como eu fui acompanhado o tempo todo na lanterna do grupo pelo Wellington, com a camiseta amarela da Turma do Fundão, que estava sempre protegendo os retardatários. Afinal, os últimos serão os primeiros a serem atropelados caso algum veículo desgovernado invada o acostamento por qualquer motivo. Desgoverno é sempre uma coisa muito perigosa. De vez em quando Wellington cedia o lugar ao Wesley, o mais jovem do grupo, mas nem por isso menos experiente. Foi ele quem notou um barulhinho na roda da minha magrela que logo em seguida ia dar problema…

Antes mesmo de chegar a São Bernardo meu pneu furou. Pela quarta vez, em menos de um mês. Já percebi que esse é um problema muito frequente. Quando estava prestes a empurrar a bicicleta de volta, um assobio alertou a turma da dianteira para retornar e num piscar de olhos eu estava rodeado por uma equipe de socorro melhor que a de qualquer seguradora. O Victor estendeu uma sacola sobre o chão contendo uma verdadeira oficina mecânica, o Fernando já tinha uma câmera velha remendada em perfeito estado. O tal barulhinho que o Wesley havia notado era a sapata do freio rasgando o pneu. Victor percebeu a necessidade de fazer um “manchão” – reforço no ombro desgastado do pneu – que o Fernando logo improvisou com um resto de calota de borracha com a marca VW perdido na estrada. Uma peça daquelas voando sobre o rosto de um ciclista faria um estrago maior do que o parafuso que atingiu o capacete do Felipe Massa.

Ao mesmo tempo que os perigos vão aumentando, o medo vai diminuindo à medida que eles ficam pra trás. Ao, finalmente, chegar à “manutenção” da Imigrantes, a primeira mensagem que deixamos aos próximos ciclistas foi: “cuidado, pista escorregadia”. Recado que não foi entendido pelo Martim, que resolveu filmar a aventura com o celular, derrapou na pista molhada pela chuva e “comprou terreno” como logo foi dizendo o Portuga, um dos mais empenhados no trabalho de sinalização. Ele e o Juan seguiam na frente, dando o ritmo do grupo e não deixando o ânimo cair. De vez em quando paravam, para juntar o bando de gansos sobre duas rodas novamente.

Foi assim que chegamos ao pé da serra e, para fugir do medo de assalto na periferia de Cubatão, optamos pelo risco de atropelamento na Imigrantes da entrada de São Vicente. Lá há extensos trechos sem acostamento e é preciso compartilhar a pista com jamantas e ônibus. A turbulência do ar que faz chacoalhar até os automóveis, chacoalha muito mais as bicicletas.

Os trechos sem acostamento incluem algumas pontes, como a que liga o continente à ilha de Guaió, hoje São Vicente. Sobre ela a visão do canal e do mangue nos permite imaginar índios pescando em canoas, enquanto outras conduziam as caravanas de bandeirantes e jesuítas de uma margem a outra. O porto de Guaió foi formado a partir de 1502 por Cosme Fernandes, um degredado português deixado na ilha pela expedição do italiano Amerigo Vespucci – avaliador do terreno conquistado, a serviço de banqueiros da Ciclolândia. Quando o novo governador da capitania – Martim Afonso – chegou, mandou expulsar o ex-prisioneiro da próspera colônia que fundara com a ajuda do povo local. Cosme se vingou mais tarde invadindo o povoado, um maremoto atingiu a ilha, destruiu parte da cidade, esse povo todo se espalhou e continua até hoje por ai, lutando e procurando um jeito de sobreviver, na indústria, no tráfico ou no comércio de bicicletas roubadas.

Uma vez na ilha, o pedal até a praia de Itararé é rápido. Segue-se pela ciclovia marginal à antiga linha do trem de São Vicente e chega-se à ciclovia que vai até a Ponta da Praia, em Santos. Uma bela cervejada é o premio de despedida do bando de gansos ciclistas, que retorna imediatamente a São Paulo, de ônibus e de barriga vazia. Sete horas pedalando com um kibe e umas bananas passas na barriga. Sigo até a Ponta da Praia, mais 6 km de pedal, onde eu, o Martim e o Caio – “speedeiro” do grupo e meu hospedeiro – iremos dormir merecidamente até o meio-dia de domingo, não sem antes devorar um bacalhau inteiro à beira-mar.

Na manhã seguinte um passeio – a pé – pela orla marítima, em direção aos antigos clubes de regata de nomes portugueses como Vasco da Gama, ao museu do mar e… ao porto. Pergunto se está longe. “É melhor não ir até lá”, é a resposta. E ao centro? “Idem”. Desistimos do passeio, já está quase na hora de almoçar e também embarcar no ônibus de volta.

Sentada a meu lado num banco na calçada, ao lado da ciclovia da praia e do ponto do ônibus, minha vizinha nota a presença dos policiais atrás de mim que, armas em punho, param e interrogam supostos suspeitos. O movimento é grande: em poucos minutos perco a conta de quantos são abordados. Não são necessárias palavras, todos sabem que é melhor não falar nada.

Como soldados, os suspeitos – típicos habitantes de Guaió ou Piratininga, tamoios, tupiniquins ou guaranis de chinelo e mochila – colocam-se automaticamente em posição de descanço, pernas e braços afastados, mãos na nuca, prontos para a revista. “Muito bem, tem mais é que prender esses bandidos mesmo”, comenta minha vizinha. “Meu namorado teve que mudar lá do Quarentenário, tinha toque de recolher lá”, completa. A vingança de Cosme Fernandes ainda não terminou.

Colocamos nossas magrelas no porão do ônibus, deitamos em nossas poltronas reclinadas e assistimos pela janela, como uma TV,  o desfile do centro da cidade proibido e destruído, do porto ao longe e da tubulação que traz o esgoto de Piratininga até Guaió. Entramos na rodovia Imigrantes da Ciclolândia, fechamos os olhos e sonhamos que estamos na “manutenção”, cujo teto era agora o nosso chão.

Para passar por cima do medo, tem que pagar pedágio. Ou encarar uma pedalada.