Os juízes que fazem arminha. Por Marcelo Semer

Atualizado em 8 de maio de 2019 às 10:00
Arma e a Justiça. Foto: Reprodução/Justificando

Publicado originalmente no site Justificando

POR MARCELO SEMER, juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal e Doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para Democracia

A primeira providência jurídica do governo Bolsonaro foi o decreto que regulamentou, às avessas, o estatuto do desarmamento. A pátria armada foi o mote simbólico mais importante da campanha. Quem quer que pretendesse manifestar apoio ao deputado mostrava suas mãos em pose de arminha.

A imprensa noticiou, à época, que o decreto representava uma contrariedade à opinião do ministro Sérgio Moro, que supostamente pretendia mais comedimento na distribuição do arsenal. Aos incautos pode ter parecido que o juiz fosse representar uma espécie de contenção às fantasias belicosas do capitão. O desenvolvimento do governo e de seus apoios mostra que ao invés de civilizar, o pensamento jurídico está sendo colonizado pelo bolsonarismo.

Como peça de resistência de um projeto que propositadamente mistura uma ampla gama de temas e, assim, superficializa a discussão de cada um, Moro pretendeu ampliar genericamente o excesso na legítima defesa e, mais do que isso, estendeu a excludente de ilicitude para antecipar situações hipotéticas de confronto, avalizando e estimulando a prévia violência policial.

Com um texto repleto de atecnias, Moro utilizou a mesma estratégia do presidente no repúdio ao pensamento acadêmico, ao dizer que a iniciativa visava “produzir efeitos práticos e não agradar professores de direito penal”.

Fato é que aderiu, sem constrangimento, à ideia da morte como política de contenção da criminalidade. Mais, em sua exposição de motivos, deixa claro sobre quem, exatamente, se projeta a dúvida que deve autorizar a execução sumária:

O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes. Por tais motivos, é preciso dar-lhe proteção legal a fim de que não tenhamos uma legião de intimidados pelo receio e dificuldades de submeter-se a julgamento….”.

A dúvida que deveria impedir o disparo só serve mesmo para obstar o processo.

Moro não está só nesta colonização jurídica.

Wilson Witzel, outro juiz federal que largou a toga para ingressar no bolsonarismo, durante a campanha protagonizara um de seus mais controversos compromissos, discursando ao lado de um candidato a deputado que hostilizava explicitamente a memória de Marielle Franco –executada por agentes da segurança. No governo, Witzel vem se notabilizando por materializar essa legítima defesa antecipada, estimulando policiais a atirar “na cabecinha” de quem esteja portando armamento pesado. Já há denúncias de ação efetiva de snipers no Estado, que hoje registra o recorde de uma morte provocada pela polícia, em cada três.

O ainda juiz Marcelo Bretas foi o primeiro a usar as redes sociais para defender, em letras garrafais, o “DIREITO DE MATAR” do policial, como se a presunção de legitimidade dos atos administrativos pudesse ser alargada para as infrações criminais. Uma espécie de presunção de inocência fardada que inverteria, apenas em relação aos servidores, os encargos probatórios.

Tão logo o novo governo assumiu, um grupo de juízes que se intitula “independentes” visitou o general chefe da secretaria de governo com um documento tecendo críticas à “hipertrofia dos direitos humanos” e a necessidade de um Judiciário mais forte para conter os “inimigos da pátria” que ameaçam a segurança nacional.

Outro grupo, que se anuncia como Fórum de Juízes, aprova súmulas particulares, sugerindo as mais draconianas interpretações das normas processuais: a desnecessidade da audiência de custódia (ou sua ilegal transformação em julgamento), a legalidade da audiência sem a presença do réu preso, a prisão imediata do condenado no Júri, a consideração dos presos sub judice como “definitivos” para fins de estatística, entre outros enunciados destinados a esvaziar o âmbito de decisões do STF.

Para quem nutria a expectativa de que o Judiciário estivesse em condições de colocar um freio aos anseios autoritários, é bom lembrar que já passamos por essa experiência anteriormente. Salvo honrosas exceções, o poder se manteve intacto durante a ditadura. Como aponta Zaidan de Carvalho (“Entre o dever à toga e o apoio à farda: independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar”, 2017), “a institucionalização do regime autoritário no Brasil demandou um grau maior de cooperação entre militares e civis, dentre estes, a especial contribuição daqueles que integravam a burocracia judicial”.

Muito da estrutura do Judiciário atual, aliás, foi montada nos governos militares: o Pacote de Abril, que teve a reforma do Judiciário como pretexto, e a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) que tem sobrevivido a todas as mudanças constitucionais posteriores. Aspectos como a inexistência de uma efetiva democracia interna, a prevalência da antiguidade como critério eleitoral e a permanência de mecanismos de repressão à voz dos juízes ainda vigem como extemporâneos entulhos autoritários.

O Judiciário permanece dividido em castas e não é propriamente uma surpresa que tenha sido muito mais comedido na imersão aos direitos humanos do que a Constituição sugeria. Ademais de ter-se recusado a seguir a jurisprudência de direito internacional para julgar, como nos países vizinhos, os crimes contra a humanidade praticado nos anos de chumbo. Para o brasilianista Anthony Pereira, aliás, foi exatamente a judicialização da repressão por aqui que impediu que o Judiciário apreciasse as barbaridades do período.

A manifestação do presidente do STF dizendo que prefere chamar de “movimento” o golpe que instaurou a ditadura, nem se mostra, propriamente, uma novidade. Evocando novamente Zaidan de Carvalho:

“Nas manifestações públicas de aclamação da subida ao poder dos militares pelos juristas, a característica mais marcante foi a negação da expressão “golpe de Estado” para designar o movimento pelo nome através do qual ele se autodescreve: ‘Revolução’.”

Lédio Rosa de Andrade, recentemente falecido, lembrou um episódio ilustrativo, em seu O que é Direito Alternativo (1998):

“(…) por volta de 1975, em um Congresso Nacional dos Magistrados, o então juiz de Direito, João Baptista Herkenhoff (…) propôs uma moção pedindo tão-só a volta do Estado de Direito (não incluiu a palavra Democrático) e foi derrotado de forma esmagadora, recebendo apoio apenas de três ou quatro congressistas…”

Ao invés de adequar as disposições da Loman ao estatuto democrático que alcançamos em 1988, o que o CNJ tem feito é dar ainda mais dimensão às proibições, como a manifestação dos juízes, amputando-lhes a cidadania pela extensão desmedida da “dedicação à atividade política-partidária”.

Como assinala Eugenio Raul Zaffaroni em Poder judiciário: crise, acertos e desacertos (1995), “o perfil público do juiz asséptico [sem ideologia] implica um terrível manejo autoritário da imagem pública da justiça e, ao mesmo tempo, uma fortíssima deterioração da identidade pessoal dos juízes …”. Ademais, lembra ainda o autor argentino o ministro da Justiça de Mussolini: “Rocco não pretendia uma magistratura fascista, senão uma magistratura ‘apolítica’”.

O desprezo indisfarçável pelos diretos humanos, a adesão ao encarceramento desmedido, o populismo penal que busca capital político por intermédio das punições, o apego desmesurado às noções de segurança e a crítica à ideologia como forma de repúdio do conhecimento.

A aproximação da farda e da toga, sob esse discurso, é nada menos que assustadora.