Os militares, do Iluminismo ao terraplanismo. Por Luis Nassif

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 9:36
General de Exército da reserva Augusto Heleno (Antônio Cruz/Agência Brasil)

PUBLICADO NO GGN

POR LUIS NASSIF

Reparem no raciocínio do vice-presidente Hamilton Mourão.

1. A Escola de Sagres, criada por Dom Henrique, Infante, foi um movimento de alta tecnologia, que projetou Portugal pelos séculos seguintes. Permitiu dominar a técnica da navegação, a construção de navios, a contabilidade das viagens. Empreendedorismo nato.

2. As capitanias hereditárias estão na raiz do patrimonialismo brasileiro. Enquanto os Estados Unidos abriam a possibilidade de propriedade da terra para os pioneiros, e a Argentina conquistava os pampas com os terratenientes, as capitanias estratificaram a propriedade da terra, foram responsáveis pelos latifúndios improdutivos, impediram o desenvolvimento de várias regiões do país, especialmente o Nordeste. Ou seja, antiempreendorismo nato.

Como Mourão está fazendo o mesmo curso intensivo de história do Eduardo Bolsonaro, confundiu as bolas e transformou as capitanias hereditárias em exemplo de empreendedorismo.

Some-se a visão rasa do general Alberto Heleno para se imaginar as Forças Armadas como um conciliábulo de terraplanistas. Não é bem assim. Os institutos militares têm formado engenheiros e tecnológos de alto nível.

E historicamente, não foi assim.

Os iluministas da República

O livro “Forças Armadas e Política no Brasil”, de José Murilo de Carvalho, tem um capitulo sobre a formação intelectual dos militares no período da Abolição e da Proclamação. Havia uma formação ampla, humanista, uma fé inabalável na ciência, estudo das escolas de pensamento, criando verdadeiros bacharéis fardados, com uma diferença. Os bacharéis civis provinham de famílias abastadas e iam buscar colocação no serviço público. Os militares vinham de famílias de militares e de baixa renda, portanto com uma visão de país diferente do patrimonialismo histórico.

Abaixo, alguns trechos do livro:

Separada da Escola Central, que, sob o nome de Politécnica, se encarregou do ensino da engenharia civil, a Escola Militar continuou a dar ênfase ao ensino das ciências e da engenharia. A quem completasse os cinco anos do curso, como foi o caso de Euclides, era concedido o diploma de bacharel em matemática e ciências físicas e naturais, um título nada militar. Sua importância na formação de Euclides foi muito grande. Buscarei resumi-la distinguindo quatro dimensões, a cultural, a intelectual, a política e a social.
Pelo lado cultural, paralelamente às matérias do curso, fortemente centradas nas matemáticas, engenharias e ciências da natureza, os alunos desenvolviam intensa atividade extracurricular em sociedades, clubes e revistas literárias. As revistas eram porta-vozes dos clubes. Destacaram-se, por ordem cronológica, a Phenix Literária (1878), a Club Acadêmico (1879), e a Revista da Família Acadêmica (1886).

A Revista do Club Acadêmico não destoava e publicava trabalhos sobre “A morte do amor”. A Revista da Família Acadêmica, de cuja direção fazia parte Cândido Mariano da Silva (Rondon), falava sobre “Evolução cósmica”, “H. Spencer e o evolucionismo”, “Concepção de Leibniz”.

Um dos mais destacados atores militares foi o futuro marechal Setembrino de Carvalho, ministro da Guerra de Artur Bernardes. Era tal o entusiasmo dos alunos pelo teatro e pelas atrizes que certa vez tomaram o lugar dos cavalos que puxavam a carruagem de Sarah Bernhardt.

Depoimentos de ex-alunos da época de Euclides garantem mesmo que o maxixe teria sido inventado lá dentro nos caroços, que vinham a ser bailes em que dançavam cadetes vestidos de homem com cadetes vestidos de mulher.[ 5] Fico imaginando uma parada militar ao ritmo de um maxixe.

As correntes mais populares eram o positivismo e o evolucionismo, com seus respectivos gurus, o francês Auguste Comte, os britânicos Charles Darwin e Herbert Spencer, e o alemão Ernest Haeckel. A juventude estudantil militar era dominada por crença fanática no poder da ciência. Esse cientificismo, partindo das ciências exatas e da biologia, estendia-se à sociedade, como doutrinavam Comte e Spencer.

A sociedade, ou, no caso de Comte, a Humanidade com H maiúsculo, eram governadas por leis tão rígidas quanto as da biologia ou da astronomia.

A faceta política da Escola é mais conhecida porque é um componente da conjuntura que vivia o país na segunda metade da década de 1880. A Escola Militar, as outras escolas superiores, a imprensa, o mundo político, todos discutiam a abolição e, sobretudo depois de 1888, a República. Os militares envolveram-se ainda no que ficou conhecido como a Questão Militar.

O abolicionismo lá chegou já em 1880, quando foi criada uma Sociedade Emancipadora que fazia propaganda e coletava fundos para a libertação de escravos. Em 1883, ela se uniu a outras sociedades dedicadas à mesma causa para fundar a Confederação Abolicionista. Em 1887, os alunos publicaram por conta própria um discurso de Rui Barbosa pronunciado na Confederação Abolicionista, aplaudindo a adesão do Exército à causa da libertação dos escravos.

Mais contundente foi o apelo que o Clube Militar dirigiu ao governo, em 1887, assinado por seu presidente, o então general Deodoro, solicitando que o Exército não fosse empregado na captura de escravos fugidos.

Os alunos da Escola foram ainda mais longe. Segundo alguns depoimentos, eles teriam desenvolvido ação semelhante à dos caifazes de Antônio Bento em São Paulo: furtavam escravos, escondiam-nos em suas repúblicas e os enviavam para o Norte.[ 7]

Os alunos da Escola foram ainda mais longe. Segundo alguns depoimentos, eles teriam desenvolvido ação semelhante à dos caifazes de Antônio Bento em São Paulo: furtavam escravos, escondiam-nos em suas repúblicas e os enviavam para o Norte.[ 7]

Entre os principais incentivadores do conflito estava  a mocidade da Escola Militar e agora também da Escola Superior de Guerra, criada em 1889 para abrigar os alunos dos dois últimos anos do curso da Praia Vermelha.

Veio de outro ex-aluno, contemporâneo e amigo de Euclides, Alberto Rangel, a definição da Escola como “uma academia em um quartel”. Os alunos referiam-se em geral a ela como Tabernáculo da Ciência, título que lembra o de Sorbonne usado para designar a moderna Escola Superior de Guerra. Suspeito que meu saudoso professor Francisco Iglésias se referiria às duas designações com um adjetivo que só dele ouvi: desfrutáveis.

Os terraplanistas do século 21

Extraído do artigo “Xadrez da ultradireita e o pensamento militar” sobre os intelectuais que fazem a cabeça de Alberto Heleno e Hamilton Mourão.

É por esses mares que singra o barco do general Coutinho.

De acordo com Costa Pinto, para o Gal. Coutinho os socialistas e comunistas (internacionais e nacionais) estariam infiltrados no discurso do politicamente correto:

 

1) nos partidos como FHC (vinculado ao fabianismo que teria como importantes representantes Soros, David Rockefeller, Bill Clinton, entre outros) e como o Lula (articulado com Fidel Castro organizados do Foro de São Paulo);

2) nas ONG´s;

3) nas escolas e Universidades;

4) nos meios de comunicação;

5) nas manifestações artísticas;

6) nos movimentos sociais (ambientalistas, movimento negro, LGBT, MST, etc..).

Nas palavras de Coutinho “os movimentos alternativos e de minorias são estimulados ou mesmo criados pelas organizações de esquerda revolucionária como componente auxiliar da luta de classes (aprofundamento das contradições internas) e como elemento ativo da ‘desconstrução’ da família tradicional e dos valores da civilização ocidental cristã”. ”

No plano internacional, além do apoio das ONGs, se valeriam da própria Organização das Nações Unidas (ONU) para favorecer regimes nacionais de esquerda e movimentos revolucionários em países do Terceiro Mundo.

É em cima dessa barafunda teórica, que o movimento alt-right, e seus sucedâneos tupiniquins, conseguem transmudar movimentos pacíficos, de defesa dos direitos humanos, em ameaças revolucionárias que precisam ser combatidas no plano cultural e com repressão política.