Os negros de Washington. Por Moisés Mendes

Atualizado em 18 de agosto de 2025 às 23:45
Negros de Washington: 28 de agosto de 1963, a “Grande Marcha por Trabalho e Liberdade”, liderada pelo reverendo Martin Luther King Jr., conhecida como a “Grande Marcha para Washington”, que reuniu 250 mil pessoas vindos de diversos lugares do país em direção a capital americana. Foto: National Park Service

No início dos anos 90, testemunhei as reações de dois jovens depois das entrevistas para obtenção de visto, no consulado dos Estados Unidos em Porto Alegre, ali na Rua Coronel Genoíno, perto do Cine Capitólio.

Me lembro de ambos em situações opostas. Um rapaz pegou o papel no guichê, com a resposta do consulado, e saiu pulando e gritando como se tivesse feito um gol. E uma moça que, logo depois do rapaz, saiu chorando da sala da recepção. Não havia conseguido o visto.

Sei, porque conversei com o rapaz antes, que aquela era sua terceira tentativa. Da moça, não sei nada. Conto apenas que, quando vi que ela se dirigia à saída, contive o impulso de dizer alguma coisa que pudesse oferecer algum consolo.

Iria dizer, porque sabia do caso do rapaz, que ela poderia se inspirar na insistência dele. Mas não tive desprendimento suficiente para me levantar e ir até ela. Até porque não sei se conseguiria conter sua caminhada até a porta.

Conto isso porque está cada vez mais difícil entrar nos Estados Unidos. Eu entrei duas vezes, na primeira como convidado de um programa do governo americano para jornalistas – e lá fiquei por um mês – e na segunda como turista, quando testemunhei os dois casos que contei.

Vou tentar refletir sobre o que acontece com quem sonha em entrar um dia nos Estados, mas esclareço antes que: 1) não sou americanófilo, não tenho adoração pelos EUA e 2) não sofro de americanofobia.

Não me incluo entre os que, por desprezo ao neofascismo de Trump, dizem que não vale mesmo a pena mesmo ir aos Estados Unidos. Que tudo é comércio, que eles não têm história e que nem Nova York vale a pena. Nada disso. Vale muito.

Se tivesse dinheiro sobrando, teria voltado mais vezes. Para desfrutar do estranho sentimento de solidariedade e empatia de Nova York, onde todos param na rua se ouvirem o pedido de ajuda de alguém. Será que aquilo só vale para contatos nas ruas?

Voltaria para poder andar sozinho por Washington, sem ninguém por perto, só eu na vasta avenida num domingo, como aconteceu na primeira vez que estive lá.

Naquele domingo, no verão de 1992, eu caminhava por uma avenida, perto da Casa Branca, quando atravessei e, ao olhar para trás, vi um homem na outra quadra caminhando na mesma direção.

A avenida imensa vazia, e só eu e aquele homem que parecia andar mais rápido do que deveria num domingo. Um homem negro, grande, jovem. Numa cidade em que negros jovens ficam nas esquinas com copos descartáveis, para que ali se deixe uma moeda.

Aquele moço era um dos negros enormes de Washington. Olhei duas vezes para trás, percebi que ele estava mais perto e parecia  acelerar o passo. Para que o cenário de medo fosse completo, não surgia mais ninguém de nenhum lado. Não passava um carro.

Acelerei o passo e, por intuição, decidi parar na esquina. Parei, olhei para o homem, como se devesse encará-lo, e percebi, ou acho que percebi, que ele teria reduzido o passo.

E então voltei a andar rápido e cheguei a um parque. Uma mulher sentada, um homem andando, um outro homem ao longe. Todos brancos. Pode ser, não lembro direito, até porque nunca voltei lá, a ponta do Meridian Park.

E ali eu me senti seguro. Andei em direção à mulher, contornei um canteiro e vi o homem negro passar. Tinha uns 30 anos, era forte, grandão. Sentei num banco e pensei: o que está acontecendo? E o homem sumiu.

Já contei essa história a amigos. Me sinto constrangido ainda hoje, quando Trump investe contra imigrantes e contra os negros de Washington. Cassa os vistos de ‘inimigos’ estrangeiros e decide ocupar a capital com a sua guarda nacional, para tirar os negros das ruas.

Donald Trump, presidente dos EUA. Foto: reprodução

O brasileiro que já enfrentava restrições para entrar nos Estados Unidos se sente seguro hoje para pedir visto? Uma jovem solteira, como imagino que fosse aquele que teve o visto rejeitado, entraria na fila?

Aquela moça insistiu e um dia conseguiu seu visto, na terceira tentativa? Por que foi rejeitada lá nos anos 90? Por ser jovem, não ter carteira assinada, não ter filhos? Porque seria uma imigrante clássica, que poderia entrar e ficar por lá.

Hoje, já sabemos que o sistema de imigração informa às polícias do governo se o pretendente a um visto fala mal dos Estados Unidos nas redes sociais. Não de Trump, mas, na visão deles, dos Estados Unidos.

Penso naquela jovem que não talvez não falasse mal de ninguém e penso nos brasileiros que conseguiram entrar e ficar em alguma cidade americana. Que conseguiram namorar e casar, que têm filhos americanos e estão agora sendo expulsos por Trump.

Mas penso nos negros de Washington, que nasceram ali, foram marginalizados pelo liberalismo que Trump agora destrói, e penso naquele jovem negro de quem tive medo há mais de 30 anos.

Senti medo porque diziam que era preciso ter muito cuidado em Washington. Que, em Nova York, não se deveria nunca entrar sozinho no Harlem, porque não dava pra passar da rua 120, depois do campus da Columbia.

Eu entrei, dentro de um ônibus, e vi de longe os negros nas esquinas, muitos anos antes do que chamaram de revitalização do Harlem e da abertura das igrejas aos turistas brancos, por iniciativa, entre outros, do brasileiro Nelson Motta em articulação com as comunidades.

Diziam para que não se chegasse sozinho perto do Bronx. Repetiam, assustavam. Por isso senti medo daquele negro em Washington. E me arrependo até hoje de ter sido obediente às recomendações e não ter ido às periferias da capital.

Hoje, Trump diz que é preciso limpar as ruas de Washington e outras grandes cidades americanas, começando pela expulsão dos descendentes de escravizados, muitos dos quais votaram nele. Washington foi, até os anos 70, a cidade dos negros. Eles eram dois terços da população. Hoje, seriam apenas a metade.

Gostaria de poder voltar a Washington, a terra dos negros e da grande marcha de Martin Luther King, para andar de novo num domingo pelas ruas que Trump quer limpar.

Voltaria para poder encontrar um jovem negro ao acaso e pedir desculpas pelo que senti ao fugir de um deles, lá em 1992, a poucos metros da Casa Branca ocupada hoje por um neofascista que adota o racismo como política de Estado.

Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/