
Por Lenio Streck, publicado no Conjur:
Esta coluna — recheada de humor, sarcasmo e ironia — vai em homenagem e desagravo à professora Melina Fachin, covardemente atacada dias atrás por destro-extremistas-apoiadores-de-golpistas que, além de misoginia verbal, agiram com violência contra mulheres e instituições — tudo a pretexto da “liberdade de expressão” e ataques ao Supremo Tribunal Federal.
Além do que ocorreu na rua em frente à universidade, (Melina levou uma cusparada), chamou a atenção o conjunto de gritos, ofensas e ameaças (invocando inclusive o pai da professora, ministro do STF), algo como “vocês vão ver; vamos pegá-los; nos aguardem” e coisas desse tipo ou piores — e, estranhamente, depois da violência e ameaças verbais, encerraram com o coro de “anistia já” — afinal, a anistia “busca a paz”, certo — sic.
Impressiona que isso ocorra no curso de direito — sim, direito. A comunidade jurídica parece ter fracassado. A democracia é atacada em nome da própria democracia. Tentaram um golpe de Estado. Foram condenados. E tem gente — do direito — que acha que golpe de Estado é direito fundamental! Fossem médicos, fariam passeatas contra antibióticos. Triste.
A tese é: me anistia para eu te pegar!
Eis a paz buscada. Viu-se.
Pois bem. Em tempos de ode ao golpismo, em que,
– em nome da democracia, prega-se a sua extinção e
– depois, em nome da mesma democracia, pede-se anistia,
– fiz uma pesquisa para saber o que os filósofos e literatos poderiam dizer sobre os golpistas brasileiros, que vão de deputados amotinados, senadores que pedem impeachment de ministros do STF, cantores sertanejos, pastores “emPIXados” até motoristas e fazendeiros, passando por policiais militares, radialistas, vereadores e até causídicos.
Origem e ‘natureza jurídica’ do golpismo
Os golpistas já estavam listados para embarcarem na Nau dos Insensatos, o best seller pré-moderno (1.494!!!) de Sebastian Brant, que foi traduzido para 40 línguas. No entremeio de toda aquela gente, lá estavam eles: os golpistas. Furando fila. Gritavam. Histrionicamente. Tinham um lugar especial. Claro: expulsaram os não-golpistas. Com cusparadas. Tudo “gente de bem”.
No Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, havia, ao que consta, lugares reservados a eles, os golpistas. Que entraram gritando “anistia já”.
Um capítulo secreto, descoberto há pouco em escavações — ainda inédito —, mostra que Cervantes se irritava com duas coisas: néscios e golpistas, o que dá no mesmo, ele dizia.
Atravessaram os séculos e, com o advento da computação e das redes sociais, finalmente saíram da toca. Umberto Eco dizia — e aqui o parafraseio — “os golpistas perderam a vergonha”.
Por aqui, os golpistas fizeram milhares de lives propondo — e querendo — golpe de Estado. Quase conseguiram. Foram muito ajudados por radialistas néscios que passam o dia cuspindo ignorância. E tinham — e ainda têm — muitos apoiadores. Muitos. Paixão pela farda. Coisas psicanalíticas mal resolvidas. E paixão por opressão. Patriotas traidores. Nota: nem todo néscio é golpista. Mas todo golpista é néscio. Mas ser néscio não tem cor ideológica. Podem estar em todos os lugares. Conheço vários néscios do campo da não-direita (para ser eufemístico).
Os golpistas residem em neocavernas. Platão foi o primeiro a denunciar os golpistas e os néscios. Faça o teste: entre em um grupo de whats em que haja golpistas e tente dizer que golpe é antidemocrático e que não cabe anistia — você será expulso, como aconteceu no Mito da caverna.
Somos todos devedores de Platão.
Golpistas adoram redes sociais. Golpistas odeiam literatura. Para eles, o mundo é como as Ideias de Canário, de Machado de Assis: uma gaiola pendurada em um brechó. “O resto tudo é mentira e ilusão”, como diz o falante canário ao Senhor Macedo, que o descobriu. O problema: golpistas, que são sempre néscios, não sabem quem foi Machado.

‘Natureza filosófica’ dos golpismos e dos golpistas
Buscando fazer uma epistemologia dos néscios, cabe, de pronto, perguntar: o que os filósofos e afins diriam d’eles? Eis as respostas, colhidas a partir do método palimpsesto (os golpistas não sabem o que é, claro).
Parmênides: tudo permanece (inclusive os golpistas; por isso não se pode conceder anistia).
Heráclito: o fogo é a origem de tudo. E os golpistas gostam de fogos de artifício.
Protágoras: o golpista é a medida de todos os golpes e da estultice.
Platão: os golpistas fazem parte do mundo sensível. Jamais alcançarão o suprassensível. Por isso, para eles, as sombras são a realidade. Não sairão jamais da caverna.
Górgias de Leôncio, o sofista mais famoso: um golpista é incognoscível e, se for cognoscível, é impossível contar para o vizinho.
Guilherme de Ockham: não há golpismo universal; apenas golpismo singular.
Hobbes: o golpista é o lobo do próprio golpista. Cuidado!
Descartes: golpistas não possuem cogito; golpeio, logo sou. Golpistas não possuem cogito; mas existem aos montes.
Kant: não existe um golpista em si.
Leibniz: vivemos no melhor dos mundos possíveis. Até vir um golpista encher o saco.
Locke: a mente do golpista é como uma folha de papel em branco e nunca foi preenchida.
Rousseau: O homem nasce livre, até que o golpista chega para implantar uma ditadura.
Edmund Burke: Desconfio de revoluções. Desconfio mais ainda de golpistas!
Maquiavel: atrás de um golpista sempre surge outro. Não deixe nenhum ficar perto de você.
Heidegger: faz parte do modo próprio de ser no mundo o golpista ser assim “golpeador”.
Wittgenstein (do Tractatus): se os limites da linguagem são os limites do mundo, golpistas possuem apenas um “mundinho”. Ele estava pensando em uma determinada filósofa brasileira que não o leu. Mas parece que Wittgenstein simplificou a proposição 7 para dizer que “em boca fechada não entra mosca”. Bingo.
Nietzsche: Deus está morto. Um golpista o matou e saiu quebrando tudo. Mas logo pediu anistia.
Freud: esse golpismo é uma questão sexual mal resolvida ou coisa assim.
Camus: é preciso imaginar Sísifo feliz — melhor carregar uma pedra nas costas do que aguentar o golpismo barato de terrae brasilis!
Simone de Beauvoir: um golpista não nasce golpista; torna-se, após uma overdose de mensagens com notícias falsas no WhatsApp.
Marx: golpistas são o lúmpen.
Papa Francisco: quando vejo gente rezando para pneus e ETs e outros ajoelhados na frente dos quartéis pedindo golpe de Estado, penso no Deus do velho testamento. E o que ele faria com os néscios.
Dworkin: a raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa, mas o golpista não sabe nenhuma coisa.
E há uma frase famosa atribuída a Martin Luther King: não me preocupa o barulho feito pelos golpistas; o que me inquieta é o silêncio dos não-golpistas. Percebem?
Este é, pois, o meu tributo ao anti golpismo. Afinal, como dizia o Barão do Itararé:
“Diga-me se andas com um golpista e verei se posso sair contigo.”
Post scriptum: O dia em que deputados petistas votaram sob a liderança de Sóstenes e Eduardo Bolsonaro — a PEC da Blindagem ‘vai ou racha’
A coluna estava concluída quando saiu a notícia de que foi aprovada em dois turnos, na Câmara, a PEC da Blindagem, que protege os deputados de qualquer ingerência do Judiciário. Qualquer crime – por exemplo, deputado mata alguém no trânsito – somente gerará processo se seus colegas, em voto secreto, permitirem e, é claro, se houve maioria absoluta. Bingo. Belo exemplo para a população. Alguns são bem mais iguais… porque superiores…entre si. A vergonha já sei foi há muito tempo. Terceiro mundo é vocação para a maioria dos parlamentares. Pior: teve um pequeno número de deputados governistas-petistas que votaram sob a liderança de Sóstenes e Eduardo Bolsonaro. Que fase, não?
Mas tem (ou haverá) mais. De tédio ninguém morre. Vem aí a anistia light (dizem que tem “acordão” nisso – a ver), que transforma os crimes de golpe de estado e abolição violenta em crimes com pena menor do que furto qualificado.
Passando a anistia 1.0, furtar uma carteira com destreza é mais grave do que tentar derrubar um governo, inclusive com plano de matar o presidente, o vice e um ministro do STF! Mundo, mundo, vasto mundo brasileiro. Que feio.
Claro: qual é a importância de punir quem tenta derrubar um governo eleito? Podiam ter feito melhor: colocar a aplicação do Princípio da Insignificância. Teremos a modalidade “golpe-bagatela”! Substituir por cestas básicas.
Pronto. O Brasil vai para Estocolmo. O prêmio Ignóbil é nosso.