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Os policiais do Carandiru não defendiam a sociedade, e sim seu direito de matar. Por José Nabuco

Carandiru

Este artigo está sendo republicado à luz da anulação do julgamento dos policiais envolvidos no Massacre do Carandiru.

 

A tropa entra em um pavilhão onde presos brigam entre si e onde não existe refém. Ao invés do batalhão de choque, normalmente usado nesses casos, na frente vai uma tropa de elite especializada em matar, a Rota. Os presos não reagem e se escondem em suas celas. Centenas de tiros são ouvidos e os policiais de fora comemoram.

90% dos disparos ocorrem para dentro das celas, pela abertura da porta. Uma cascata vermelha de água e sangue desce pelas escadas do pavilhão. 111 detentos são mortos e nenhum policial é ferido. O comandante da operação elege-se, anos depois, duas vezes deputado estadual, usando o 111 como número de sua candidatura. O então governador afirma que a ação foi legítima.

Não são raras as pessoas que afirmam que os policiais cumpriram o dever ao eliminar a vida dos presos que, afinal, “não eram santos”. Eis a maior tragédia desse episódio: a complacência da sociedade.

No Judiciário e no Ministério Público, é possível encontrar quem defenda o massacre. A incrível demora do julgamento desse caso é algo que causa perplexidade. Uma certa aceitação do massacre pesou para isso. Não foi dada a prioridade que merecia um caso de tamanha magnitude. Não é possível, à luz do direito e dos valores elementares da democracia, justificar aquelas mortes. E os representantes do povo, reunidos na sala secreta, assim entenderam.

A única justificativa legal para um policial matar alguém é a legítima defesa, sua ou de outra pessoa. Fora dessa situação, estará configurado crime de homicídio. A alegação de que presos possuíam armas de fogo é uma farsa que subestima a inteligência de qualquer um. A briga se dava, como é comum nos presídios brasileiros, com o uso de facas e estiletes feitos por eles mesmos. E nenhum detido, por mais desvairado que fosse, enfrentaria a Rota, com policiais armados com metralhadora, esgrimindo estiletes artesanais.

Os relatos contam que as metralhadoras eram colocadas na janelinha da porta da cela e a rajada era disparada para dentro. Os peritos não encontraram sinais de tiros de dentro para fora. Os policiais, antes de deixarem o prédio, desfizeram o cenário, para atrapalhar a perícia e apresentaram fraudulentamente, como é usual nesses casos, velhos revólveres, na tentativa de atribuir aos presos a iniciativa do tiroteio. Há relatos de que detentos nus foram obrigados a amontoar cadáveres e, quando não restavam mais corpos, foram assassinados friamente.

Dentre os que tentaram justificar essa ação está o então governador Luiz Antônio Fleury Filho, que disse, em testemunho no júri, que a ordem seria legítima, pois “existiam pessoas que estavam matando umas as outras. A polícia não pode se omitir”. Dos 111 mortos, apenas 9 foram assassinados com arma branca (facas ou estiletes), ou seja, por outros presos. Segundo a lógica fleuryana, 9 presos foram mortos por detentos e a PM matou mais 102 para que os outros não matassem. Talvez Fleury estivesse defendendo o monopólio da matança.

Não existe democracia que tenha alcançado a paz social através da violência policial. Um regime democrático pressupõe, sobretudo, a limitação do poder, por isso o policial tem limites em sua atuação. Não lhe cabe o papel de justiçar criminosos, a pretexto de defender a sociedade.

A expectativa, agora, é saber sobre a apelação interposta pelos condenados. Nesse caso, as possibilidades são duas: uma é a anulação do julgamento se houver vícios processuais, ou seja, se a forma do julgamento não tiver sido respeitada. A outra é a análise de provas pelo Tribunal de Justiça.

Os acusados, como já disse, não podem ser absolvidos, mas a lei permite eles sejam julgados novamente, se entender que a condenação foi “manifestamente contrária à prova dos autos”. Isso só vale quando a decisão é despropositada, completamente absurda, o que não é o caso.

Do ponto de vista histórico, o ex-governador Fleury terá em sua biografia a marca indelével de ter sido o governador do massacre do Carandiru. Mas a verdade é que uma sociedade que justifica o massacre de mais de 100 pessoas pela polícia está clamando por atos de opressão do estado. Ao condenar os 23 policiais da Rota, os jurados estão fazendo uma reconciliação do país com os valores essenciais da democracia.

 

José Nabuco Filho

José Nabuco Filho é mestre em Direito Penal pela Unimep, professor de Direito Penal da Universidade São Judas Tadeu e quarto-zagueiro clássico. Seu email: j.nabucofilho@gmail.com

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