O romancista que estreou com mais de 70 anos e virou um mito na França

Atualizado em 29 de janeiro de 2013 às 18:00

Henri-Pierré Roche estava velho quando escreveu Jules e Jim. Truffaut leu. O resto é história
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ENCONTRO UM livro no sebo de que sou freguês, um pouco adiante da estação de Putney Bridge, logo ali,  e compro. Na verdade, levo três. Mas é sobre um que quero falar: Jules e Jim, do francês Henri-Pierré Roché. Foi transformado num filme, hoje um clássico, por Truffaut, com o mesmo nome. Não poderia ser diferente. O que impressionou Truffaut, quando descobriu o livro, em 1955. foi exatamente o nome. A sonoridade, originalidade dele.

Basicamente, é a história de dois homens, Jules e Jim, que compartilham convicções, causas, charutos — e mulheres, acima de todas as quais Kate. Coisas de franceses.

Truffaut, fora o título, ficou impressionado com a idade de Roché. Era seu primeiro romance. Ele tinha mais de 70 anos. Jules e Jim passou despercebido. Os resenhistas não o notaram, e muito menos os leitores. Mas Truffaut, então ainda um jovem aspirante a cineasta, sim, e isso mudaria tudo.

O homem que começava a vida se aproximou do homem que a encerrava, unidos por um livro do qual um era o autor e outro um leitor. Roché tivera uma jornada movimentada ao longo dos anos. Seu círculo de amigos artistas era notável. Era muito amigo de Marcel Duchamp, e foi ele quem aproximou Picasso dos americanos quando o apresentou a Gertrud Stein.

Truffaut disse ao velho que pretendia filmar Jules e Jim.

Roché ficou entusiasmado. Tentou apressar o projeto do jovem amigo, até porque o tempo não corria a seu favor, mas não teve sucesso. Truffaut tinha sua agenda e suas prioridades. Quando Jules e Jim foi lançado, em 1962, Roché já estava morto.

Não viu o sucesso póstumo de seu romance desprezado ao chegar às livrarias. Por causa do filme, o livro foi traduzido em várias línguas. Na França, crianças foram batizadas em grande número como Jules, Jim e Catherine, como Truffaut chamou a mulher no filme. Catherine, com sua liberdade sexual sem culpa, virou um símbolo das feministas francesas na década de 60. “Roché não estava lá para colher o sucesso”, escreveu Truffaut no prefácio da edição em inglês que comprei, de 1980.

É uma história parecida com a do sueco Stieg Larsson, o autor da Trilogia Millennium. Uma estréia também tardia: 50 anos. Mais cedo que Roché, é certo, mas mais tarde que quase todo romancista relevante. De Balzac a Flaubert, de Machado de Assis a Dostoievski, de Eça de Queiroz a Jorge Amado, de Tolstoi a Graham Greene, antes dos 30 o grande escritor já apresentou as armas. (Aqui, o artigo que escrevi sobre Larsson quando fui para sua terra, a Suécia.)

Os dois compartilham a notoriedade depois da morte.

O sebo de Ranelagh Gardens
O sebo de Ranelagh Gardens

Há um outro ponto comum entre ambos. Um detalhe não de todo insignificante. O nome Lisbeth, que não é tão comum assim. Lisbeth Salander, a hacker sociopata de tatuagens e piercings no corpo miúdo, é a razão maior do fenômeno da trilogia. Lisbeth, em Jules e Jim, é o nome de uma das filhas da mulher mais importante na vida de Jules e Jim. Lisbeth aqui, Lisbeth ali. Não me lembro de Lisbeth nenhuma em todos os demais livros que li em minha vida.  É um nome tão incomum que Truffaut o trocou.

Mais que tudo, há uma beleza singular na história de Roché e Larsson. A capacidade de sonhar num momento da vida em que quase todos nós já somos cínicos e descrentes, e já aposentamos nossos projetos e ideais. Epicuro escreveu que nunca é cedo demais e nem tarde demais para começar nada, mas quem acredita nisso exceto sonhadores como Roché e Larsson? Quando Susan Boyle disse, na primeira vez que apareceu na televisão, que queria ser cantora profissional, foi recebida com gargalhadas pela platéia. Tinha quase 50 anos. A recepção detestável do auditório, paradoxalmente, virou parte da glória de Susan Boyle.

O Jim de Roché, “alto e fino”, era ele mesmo. Assim como Mikael Blomkvist, de Larsson, é na essência autobiográfico, um jornalista de esquerda decidido a arriscar a vida no combate a vilões.

Truffaut prestou uma derradeira homenagem a Roché. O ator que interpretou Jim foi escolhido pela semelhança com Roché.

Era alto e fino, e acreditou no sonho de ser romancista numa idade em que as pessoas já se resignaram à idéia de ter apenas pesadelos.