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Osso, Mastrosso e Carcagnosso: ser mafioso é osso

Chefão da ‘Ndrangueta é preso em operação da polícia italiana

 

Embora pareça, o relato a seguir não é obra de ficção. Foi extraído do livro “Irmãos de Sangue”, que descreve a história e o funcionamento da ‘Ndrangueta segundo um dos principais procuradores antimáfia italianos – Nicola Gratteri – que vive sob proteção de escolta policial desde 1989. As fontes são processos criminais datados desde o século XIX.

 

“Picciotto”  – ou pivete – é o novato mafioso. Não é preciso ser pivete, no entanto, para se tornar um picciotto [pitchóto]. Até os marmanjos podem.

Para se tornar um picciotto de qualquer idade, porém, é preciso ser batizado. A função do batismo é reforçar os laços de fidelidade entre as as famílias ou quadrilhas.

Osso, Mastrosso e Carcagnosso [carcanhósso] são os três lendários cavaleiros espanhóis fundadores das máfias italianas. Reza a lenda – e a tradição mafiosa – que o trio fugiu da Espanha durante o século XVII depois de vingar com sangue a honra de uma irmã virgem. Aportaram na ilha de Favignana, ao lado da Sicília, onde Osso, devoto de São Jorge, fundou a Máfia. Mastrosso, adorador da Virgem Maria, foi para Nápoles fundar a Camorra, enquanto Carcagnosso criou a ‘Ndrangueta [Andrángueta] na Calábria, em devoção ao arcanjo São Miguel.

A história da máfia se confunde com a das sociedades secretas medievais, da Igreja e da maçonaria do sul da península italiana, que só se tornou o país de hoje a partir da unificação em 1861. Essas sociedades alcançaram um nível de organização e poder ao longo de séculos que permitia e exigia uma sustentação econômica. Sendo secretas, não podiam existir diante do Estado, ao qual se opunham. O crime foi uma solução natural e altamente vantajosa para seu financiamento. Estava criado o crime organizado.

A ‘Ndrangueta é a mais tradicionalista das máfias, a que mais preservou os ritos e tradições originais. Os laços de sangue contam muito em sua organização, pois foi isso que a tornou segura e impenetrável. A delação e o arrependimento são raros em sua história, garantindo a reputação de organização séria e confiável nos compromissos. Essa segurança, aliada à expansão da emigração italiana no mundo todo, criou as condições para que ela assumisse a liderança do tráfico de drogas na Europa.

Segundo o procurador antimafia italiano Vincenzo Macrì, a ‘Ndrangheta é a única máfia globalizada do mundo: “não há continente imune à presença da ‘Ndrangheta, provocada pela emigração em massa dos italianos no passado, mas também da extrema mobilidade de seus líderes e afiliados e da sua capacidade de adaptação a qualquer ambiente, mesmo os mais distantes”, afirma. Ela já está profundamente radicada na Austrália, por exemplo.

Sendo uma organização a ‘Ndrangheta e todas as máfias similares e concorrentes – como a siciliana Cosa Nostra, a napolitana Camorra e a apuliana Sacra Corona Unita – não poderia prescindir de… organização!

Como qualquer empresa, ela possui um quadro de funcionários especializados com os respectivos cargos.

O “jovem honrado” é o estagiário, candidato a ser batizado como picciotto.

A cerimônia de batismo dos estagiários aprovados para serem picciottos é conduzida pelo “chefe de reuniões”. É ele quem conduz a reunião na presença de pelo menos cinco membros que constituem os entrevistadores do candidato.

O processo é mais ou menos assim:

“Jovem, o que você procura?”, diz o chefe da reunião.

“Sangue e honra”, ele responde.

Você tem sangue?

“Tenho e ofereço.”

“Quem lhe apresentou esta sociedade?”, pergunta para registrar quem o recomendou.

“Fulano de tal” – com nome e sobrenome.

“O seu pão será chumbo e sua água será sangue em caso de traição”, avisa antes de lhe declarar um novo membro, dando-lhe um beijo em cada face.

A partir daí a carreira começa. Os batismos para os próximos cargos serão de sangue. Para se tornar um “camorrista” é extraída uma gota de sangue do polegar, na presença do chefe de reuniões e do “contador”. A imagem de Nossa Senhora da Anunciação, manchada pelo sangue do batizado, é queimada durante a cerimônia.

Na próxima etapa o camorrista será avaliado por dois outros membros que farão o papel de promotor e advogado, cada um apresentando razões contra e a favor da sua promoção a “sgarrista”. Os sgarristas podem ser “de sangue” – se cometeram algum homicídio – ou “definitivo”, quando já demonstraram toda sua capacidade. A santa protetora dos sgarristas é Santa Elizabete.

O contador administra as contas a pagar e a receber e a “bacia”, que reúne os fundos destinados à manutenção das pensões, assistência jurídica e manutenção dos detentos.

Chefe do crime é o responsável pelo planejamento e realização dos crimes violentos.

O chefe de bastão geralmente possui uma grande família natural que, por sua vez, reúne um vasto conjunto de outras relações familiares.

Os picciottos, camorristas e sgarristas formam a “sociedade menor”. Os níveis superiores – santistas e evangelistas – formam a “sociedade maior”. As duas sociedades se espelham e se completam.

Os santistas – membros do nível chamado de Santa –  fazem parte de um grupo superior cujos interesses se colocam acima da própria família e do restante da quadrilha. Em caso de necessidade, eles podem trair até a família e membros da organização para proteger o seu grupo específico. Estão autorizados a manter contatos com a polícia e os demais entes do Estado. São os responsáveis pelas relações entre o crime e a política.

 

Osso, Mastrosso e Carcagnosso

 

Os patronos dos santistas – ao contrário dos demais – não são santos, são políticos e militares, como Giuseppe Mazzini – pensador da unificação italiana – e os generais La Marmora e Garibaldi, velho conhecido dos brasileiros. “A tarefa dos santistas não é de ação, mas de pensamento e organização”, revela o procurador Gratteri.

A Santa trouxe maior lucratividade aos negócios e eficiência à organização. Protegidos pelo anonimato da nomeação, livres para trair e proibidos de matarem-se entre si, os santistas puderam aproveitar-se da vantagem de informação que detinham sobre os negócios de seus próprios sócios.

Um santista não pode ser julgado. Em caso de traição deverá se envenenar ou será morto por um grupo dentre seus próprios pares, os encapuzados, que possuem liberdade de participar também da maçonaria. Para isso recebe uma pastilha de veneno no momento do batismo, que é feito após indicação dos nomes por membros definidos durante a reunião anual de cúpula no santuário de Nossa Senhora da Montanha em Polsi, no Aspromonte da Calábria, de 2 a 4 de setembro, da qual participam expoentes do mundo inteiro.

Acima dos santistas vêm os “evangelistas”. O Evangelho é um dos últimos níveis de carreira na ‘Ndrangheta. Seus patronos são o revolucionário Mazzini e o diplomata Cavour – dois líderes da unificação italiana diametralmente opostos. Um, republicano e, o outro, monarquista. Seus santos preferidos são os apóstolos, com destaque para Pedro e Paulo.

A cerimônia de formação do Evangelho começa com as seguintes palavras:

“Em nome de Gaspar, Melquior e Baltazar, ao cair do sol e ao nascer da lua, está formada a santa corrente. Sob os nomes de Gaspar, Melquior e Baltazar e de Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu na terra e ressuscitou no céu, nós, sábios irmãos, formamos este sacro evangelho”.

São feitas três votações com três juramentos a cada uma para admitir o novo membro, todas em nome dos três reis magos. Na segunda ele recebe a marca de uma cruz no ombro esquerdo, que é beijada pelo mestre da cerimônia. Na terceira e última torna-se um evangelista, entre os vinte e cinco líderes máximos da ‘Ndrangheta.

Uma organização altamente complexa e descentralizada, portanto, que a torna muito difícil de ser enfrentada pela justiça. Caso contrário, bastaria prender o líder e estava tudo resolvido.

O tamanho e a complexidade da ‘Ndrangheta também torna difícil o reconhecimento entre seus próprios membros. Uma multinacional dá crachás iguais a seus funcionários no mundo inteiro. Os mafiosos utilizam perguntas e respostas como senha e contrasenha. Uma delas delas é assim:

“Você caminha pra cima ou pra baixo da estrada?”

“Caminho pra cima e pra baixo porque sou malandro.”

 

Se você acha que nada disso tem a ver com o Brasil, não se esqueça que malandro é uma palavra tão italiana quanto máfia.

Jura Passos

Jura Passos é jornalista. Formou-se na Escola de Comunicações e Artes da USP e fez especialização em comunicação e políticas públicas no Hubert H. Humphrey Institute of Public Affairs da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. É um eterno aprendiz de capoeira, samba e maracatu e adora viajar de bicicleta por ai, menos em São Paulo.

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