Pacote de Moro e posse de armas podem aumentar violência, diz pesquisador

Atualizado em 8 de fevereiro de 2019 às 14:00
Jair Bolsonaro e Sérgio Moro. Foto: Agência Brasil

Publicado originalmente no ConJur

POR SÉRGIO RODAS

A redução pela metade ou isenção da pena em excesso de legítima defesa cometido sob “violenta emoção”, prevista no pacote de reformas penais apresentado pelo governo na segunda-feira (4/2), é “irresponsável” e pode aumentar a impunidade. Em conjunto com a facilitação da posse de armas, pode gerar um ciclo de violência na sociedade.

É o que afirma o economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as principais publicações sobre criminalidade do país.

A ideia do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, é acrescentar um parágrafo 2º ao artigo 23 do Código Penal. O caput diz que não há crime se o homicídio foi cometido em estado de necessidade (“quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”) ou em legítima defesa (“entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”) — a chamada “excludente de ilicitude”.

O parágrafo único diz que o autor responderá por homicídio caso se exceda no exercício do direito de defesa. O novo parágrafo 2º do artigo 23 teria a seguinte redação: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Como estudos apontam que cerca de 30% dos homicídios são motivados por conflitos interpessoais, a proposta de Moro pode isentar os autores dos crimes de punição, aponta Cerqueira. E, segundo o pesquisador, o cenário de violência no país pode aumentar ainda mais com a facilitação da posse de armas de fogo – uma das primeiras medidas do governo de Jair Bolsonaro (PSL). De acordo com um estudo de Cerqueira, a cada 1% a mais de armas em circulação na sociedade, há um aumento de 2% nos homicídios.

O economista ainda considera que a ampliação das hipóteses de excesso escusável em legítima defesa é um grave retrocesso nas lutas pela proteção de mulheres, que culminaram com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e a tipificação do feminicídio.

Leia a entrevista:

ConJur — O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro aponta que, dos homicídios elucidados pela Polícia Civil no estado em 2015, 31,2% são decorrentes de “relação interpessoal”. Ou seja, são casos de assassinatos motivados por relações afetivas, vingança, rivalidade, discussões ou cobranças de dívida. Essas mortes são decorrentes de “violenta emoção”. Portanto, o projeto de Moro poderia estimular a impunidade? Ou, nessas situações, em regra, não estão presentes os requisitos do estado de necessidade ou da legítima defesa?
Daniel Cerqueira
— De fato, o trabalho do ISP, bem como um estudo da Secretaria de Segurança Pública de Sergipe e outras pesquisas aplicadas aos casos de Maceió e Belo Horizonte chegaram à conclusão que cerca de 30% das mortes violentas intencionais foram motivadas por diversos conflitos interpessoais. Inserem-se nesse conjunto questões passionais, brigas de vizinho, de bar, ou contendas por diferenças ideológicas, entre outras. São fatos que geralmente ocorreram num cenário de profundas emoções como raiva, vaidade (por questões de honra) ou medo, em que o indivíduo perde a cabeça e termina por matar o(a) outro(a) e também estragar a sua vida e de sua família.

O próprio artigo 23 da Lei 7.209/1984 já previa situações em que o fato, ou no caso a morte do outro, não constituiria crime, como “em estado de necessidade”, “em legítima defesa ou “em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Nesse sentido a proposta do ministro Moro é irresponsável e poderia claramente fazer aumentar a impunidade, desde que a Justiça passasse a acolher o argumento de violenta emoção que, strictu sensu, é um elemento presente a todos os casos envolvendo mortes, a menos daqueles cometidos por psicopatas.

ConJur — Todos os feminicídios também não decorrem de “violenta emoção”? Portanto, a proposta de Moro não poderia estimular a impunidade também nesses casos? Ou, nessas situações, em regra, também não estão presentes os requisitos do estado de necessidade ou legítima defesa?
Daniel Cerqueira
— A proposta do Moro seria hoje a redenção do Doca Street, o assassino da Ângela Diniz, que nos anos 70 chegou a ter, em um primeiro julgamento, uma condenação amenizada, em função do juiz ter aceitado a argumentação da legítima defesa da honra. Ou seja, estamos de volta aos anos 70. Depois de décadas de intensa mobilização das organizações feministas que resultou na Lei Maria da Penha e na Lei de feminicídio, tal proposta configura um grave retrocesso.

ConJur — A facilitação à posse de armas de fogo não poderia gerar mais cenários em que estejam presentes os requisitos do estado de necessidade ou legítima defesa? Afinal, ainda que o porte não seja liberado, haverá mais armas em circulação, e não é viável controlar quem está com uma. Dessa maneira, poderia haver mais excessos justificados por “violenta emoção”? E, portanto, com autores tendo suas penas reduzidas pela metade ou até absolvidos?
Daniel Cerqueira
— A facilitação da posse de armas, bem como uma portaria do Exército de 2017 que faculta aos atiradores desportivos transportarem a arma de fogo municiada (em total desacordo com o Estatuto do Desarmamento), ensejará a um aumento da circulação de armas nas ruas. Tendo em vista o caráter conflitivo e emocional do ser humano, nos próximos anos aumentará o número de incidentes violentos envolvendo essas armas. Caso os argumentos do medo, surpresa e forte emoção sejam acatados nos tribunais, indubitavelmente aumentará a impunidade e um ciclo crescente de violência armada na sociedade.